10 Considerações sobre Miguel e os demônios, de Lourenço Mutarelli ou o que é o mal?

O Blog Listas Literárias leu Miguel e os demônios - Nas delícias da desgraça, de Lourenço Mutarelli publicado pela editora Companhia da Letras; neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro, confira:


1 - É natural nas narrativas de Lourenço Mutarelli a necessidade de o leitor dar uma pausa para respirar e assimilar o que, afinal, ele acabou de ler? Todavia nesse romance tal sensação parece-nos mais persistente, pois há nela o incômodo de coisas que pairam no ar, de reflexões que carecem de tempo, pois que, de um modo aparentemente banal e mundano de um submundo conhecido por poucos, Mutarelli adentre a questões essenciais da constituição do humano, demasiadamente humano, e humano nesse caso longe de uma conceituação utópica ou ufana. Como diz-se das companhias desse soturno protagonista, a narrativa é um olhar aos demônios que não apenas o cercam, mas cercam-nos enquanto coletividade humana;

2 - Na obra temos um aparente policial com ares da literatura policial noir, Miguel, que como pede-se no gênero e sempre tem-se em narrativas de Mutarelli é um homem de vida desgraçada que adentra a uma espiral de acontecimentos provocados ao passo que parece ao menos iniciar a compreensão de suas desgraçadas existências. Entretanto, como visto no paratexto, o livro encara-se enquanto antirromance policial, já que a presença de um policial não o torna um romance policial, como bem sabemos;

3 - Obviamente teríamos de tentar analisar melhor o que seria um antirromance policial ou mesmo um antirromance, o que não se é possível numa publicação em síntese como essa avaliação. Contudo, deve-se dizer que se por um lado, Miguel claramente não é um protagonista de romance policial, como bons outros exemplos da literatura nacional exprime um pouco do olhar social para a figura do policial, pois que Miguel carrega traços compartilhados com outros policiais de nossa literatura. O dramático para o leitor é que em determinados momentos ele pode aproximar-se de conceitos arcaicos que buscam justificar os desvios morais e éticos de Miguel. Miguel, assim como talvez em alguma gradação os leitores, é alguém a cultura não civilizou por completo, imerso em suas pulsões e valores que muitas vezes saltitam entre personagens mutarellianos, medievais;

4 - O livro a bem da verdade não possui um nó fixo, como num filme - e já trataremos disso - a câmera segue como um voyeur a rotina desse policial imerso em dramas pessoais cada vez mais intensos. De crimes inóspitos como a descoberta de múmias mexicanas aos becos e travestis paulistas. O fim do casamento já dado, o namoro que se esvai, a saúde debilitada do pai, o encontro inesperado com o chefe que catapulta as questões da sexualidade tão intensas no livro a transformação final de um Miguel que questiona-se o que é o mal? quem é ou que é Deus, inciando nesse romance um olhar de Mutarelli que encontraremos em obras posteriores do autor;

5 - Já comentei nesse blog o fato de Mutarelli - sua obra - ter sido meu material de pesquisa para minha dissertação. Se lá falei no abjeto, no cu, no perverso e mundano em seus livros, já percebia também algo que me instiga a novas pesquisas: a subversão ou o jogar com os gêneros perpetrado pelo autor em suas narrativas. É o caso desse livro, antirromance policial segundo ele próprio. Neste livro, como em outros, o encaixotamento em gêneros não é tarefa fácil, talvez seja isso a banana do autor para os críticos estruturalistas, ou então sua contribuição para novos olhares. O fato é que Miguel e os demônios foge tanto da novela - pensando sua extensão - quanto do romance, pois há nele a presença talvez não de um narrador, mas de um diretor, de um roteirista, de um cameraman, no mínimo de um narrador pós-moderno como apregoado por Silviano Santiago;

6 - Esse detalhe estético é um dos tantos fatores interessantes do livro. A narração é extremamente cinematográfica, com cortes, fades e closes, com internas e externas. Não se trata de um roteiro, não, longe disso, mas também não se trata de um narrador típico das obras literárias, há uma espécie de fusão das linguagens, algo que Mutarelli é expert, e tudo isso funciona muitíssimo bem para a trama, para o que ela pede e requer. O leitor não o deixa de ser, mas é também espectador, mas um espectador com maiores liberdades que um mero espectador de um filme pronto. A linguagem e suas possibilidades, portanto, são tratadas com vanguarda e jogando com o máximo de suas possibilidades nessa obra;

7 - Quanto às temáticas, o livro naturalmente é um livro das coisas baixas. Mutarelli não se move pelo sublime, ao contrário, move-se pelas sombras soturnas do que é baixo, do que é rasteiro, do que é humano. Há uma carga existencialista de alta voltagem no seu trabalho, a natureza do homem posta em marcha, uma marcha sob olhar desesperançoso que é a toada de sua obra, bem verdade. Nesse livro em especial, as divagações sobre o que é o mal, as cisões entre Deus e o Diabo e a proximidade deste último muito mais concreta que a do primeiro, percepções que Mutarelli retomará em O filho mais velho de Deus...

8 - E não podemos deixar de destacar outro signo relevante e importante nas narrativas de Mutarelli, a sexualidade. Neste livro um duro retrato da realidade queer das travestis da noite paulista. Mutarelli expõe as posições ambíguas e contraditórias que tornam as travestis vítimas de uma opressão física e cultural que em sua narrativa descambam para a existência de uma seita secreta capaz de trazer o apocalipse ao mundo cristão. Miguel bem o pode ser um exemplo dessas contradições, contudo está em Dr. Carlos, seu chefe, o retrato da hipocrisia e do fanatismo de uma masculinidade mal resolvida que pego em pleno flagrante pelo subalterno espia-se mutilando o próprio corpo. Nesse sentido, Miguel e os demônios é também leitura interessante na perspectiva das sexualidades, uma discussão que vai reverberar em outras obras suas;

9 - Em meio a esse turbilhão de questionamentos metafísicos, físicos e morais, Miguel inicia sua construção enquanto anti-héroi, se o assim pudermos chamar. Ocorre que Lourenço Mutarelli não vive de unicórnios felizes e bonitinhos, mas das fezes abjetas de um mundo hostil e muito, muito sombrio, tomado muito mais por demônios do que por anjos. E nisso o tenebroso desfecho de sua "formatura", Miguel é um demônio ou um anjo, pior que isso, diante do que se torna, podemos nós, leitores, de todo voltarmo-nos contra este anti-protagonista? Miguel, parece-nos, uma síntese daquilo que é a literatura de Lourenço Mutarelli, ou seja, Mutarelli observa e descreve o mundo como ele o é, não como deveria ser. Por isso o autor caminha pelas sombras, pelo claustrofóbico e crê muito mais na realidade do Diabo que na abstração de um Deus;

10 - Enfim, dialético e dialógico, entre a erudição da alta filosofia que permeia suas reflexões ao ordinário das pessoas mundanas, concretas e reais, Entre Sarte e as conspirações de botequim, como sempre, Mutarelli em Miguel e os demônios entrega-nos uma leitura impactante, reflexiva e mais que isso, inovadora e provocativa que tornam o autor umas das vozes mais relevantes de nossa contemporaneidade.

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