Recentemente lemos Safiras de Candinho, do escritor José Leonídio. Aproveitando a leitura resolvemos mais uma vez conversar com esse autor que tem publicado obras muito interessantes. Confira nossas 10 novas perguntas ao escritor José Leonídio:
LISTAS LITERÁRIAS: 1 - Já tivemos a oportunidade e o prazer não só de ler mas entrevistar o autor aqui no blog, e desse nosso conhecimento percebemos que você, parece-nos, tem um ambicioso projeto literário. Quais as ambições do autor José Leonídio na literatura?
JOSÉ LEONÍDIO: Caro Douglas, a literatura faz parte da minha vida. Ela flui livremente de mim, sem que precise me espelhar em modelos pré-existentes, nem em molduras literárias ou formalismos. É o que sai espontaneamente. Todas as minhas obras e meus textos fluem naturalmente, sem maiores pretensões. Minha formação universitária é na área da Ciência da Saúde, sou médico e com pós- graduação que me permitiu ser também professor. A literatura sempre esteve presente no meu dia a dia, no convívio com professores que valorizavam a cultura literária para o enriquecimento do saber, de uma forma eclética, importante para a relação entre pacientes e alunos. Em 1984, comecei a escrever enredos para escolas de samba e blocos. Esta experiência me incentivou a escrever meu primeiro romance, A Raposa do Cerrado. Com a aposentadoria nas minhas atividades docentes assistenciais, passei a dedicar meu tempo à literatura. Não tenho grandes ambições, somente a de deixar registradas as minhas vivências, os meus questionamentos, permitindo que personagens anônimos possam ser lembrados, nada mais.
L.L.: 2 - Em Safiras de Candinho temos o bairro de Cavalcanti como um dos grandes protagonistas da narrativa, senão o grande protagonista. O que te levou a retratar esse espaço em especial?
J.L.: Sou nascido e criado em Cavalcanti, de onde saí adulto. Minhas lembranças me fizeram voltar ao passado e resgatar histórias que vi, vivi e acompanhei, na infância, adolescência e no início da fase adulta. Cavalcanti é um bairro da Linha Auxiliar da Central do Brasil. Como todos os subúrbios, caracteriza-se por sua diversidade, seja étnica, religiosa, cultural, política. O que sobressaía eram os valores morais. Não havia conflitos de classe social, havia um equilíbrio, sendo constituída sua população, na maioria, de trabalhadores das mais diversas profissões. No entanto, prevalecia uma intensa atividade cultural e religiosa, mostrando que existem formas e formas de se retratar uma comunidade, em Cavalcanti dos anos 60, o ser feliz predominava sobre comprar a felicidade.
L.L.: 3 - Aliás, em nossa leitura sentimos, pelo fator de época, a presença de certa nostalgia no olhar pelo retrovisor do tempo. Como se dá isso, na sua opinião?
J.L.: A vida é um moto contínuo, não se vive hoje o ontem, nem o amanhã. Vivemos a história do dia, mas isto não quer dizer que não guardemos as boas e más lembranças do passado. O ser humano caracteriza-se por sua capacidade de armazenar em sua memória, grande parte dos detalhes dos momentos vividos ao longo dos anos, e acredito que esse olhar no retrovisor do tempo faz parte de todos nós. Não existe borracha ou o apagador que apague o que vimos, sentimos e vivemos. Ficam para sempre dentro de nós. Por mais que o novo seja interessante, as experiências passadas marcam uma trajetória de vida. Todos os passos que damos a frente tem como base os que demos atrás. Um escritor, por mais que não queira, coloca sempre um pouco do seu componente nostálgico em suas obras.
L.L.: 4 - Nesse sentido, a relação entre Candinho e Maria das Neves não ressalta esse olhar nostálgico a experiências e comportamentos que talvez no presente já estejam perdidos?
J.L.: A história de Candinho e Maria das Neves passa-se em algum momento da primeira metade dos anos sessenta do século passado. Ainda com lembranças da belle époque, mas vivida num bairro onde o conservadorismo prevalecia. Os cinemas, os bailes, os movimentos de liberalização internacionais traziam novas vivências, novos conceitos, mas todos muito comedidos nos redutos mais distantes e os subúrbios eram exemplo. A singeleza, que caracteriza a relação entre o casal, o respeito às tradições da família, são marcas de uma época. Não sei se posso dizer que foram perdidos estes valores, porque marcaram aquele período. A evolução, em todas as suas faces, descortinou um novo ambiente, com novos valores, novas visões. O “juntos para sempre até que a morte nos separe” deixou de existir e, como bem disse Vinicius de Moraes, em Soneto da Fidelidade:
Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.
L.L.: 5 - Isso também nos leva a uma outra pergunta, o presente está muito afastado do Cavalcanti das memórias produzidas e reproduzidas na narrativa?
J.L.: Fisicamente o bairro é o mesmo, continua um vale. O Primavera, o alto da Imburana, a Pedra Lisa, a feira, a igreja do Apostolo São Pedro de Costas para a rua permanecem. O que não encontraremos mais é o ambiente que caracteriza a obra. Hoje, os valores são outros. O cinema e alguns clubes cessaram suas atividades. Vivemos numa outra ótica, onde o aqui e o agora é o mais importante. As mudanças que custavam a chegar nos subúrbios, atualmente, chegam na velocidade da luz, houve um nivelamento nos hábitos e ações. São os novos tempos.
L.L.: 6 - Além disso, quais foram os desafios de tecer esse amálgama diverso de personagens que desfilam pela obra? São reminiscências?
J.L.: Por mais criativo que sejamos, não se escreve o que não se viu, não se vivenciou. Costumo citar os filmes de ficção científica nos quais os extraterrestres têm olhos, mãos, orelhas, a imagem e semelhança de que os criou. Os personagens que fazem parte de todo o conjunto da obra foram pinçados da vivência do dia a dia com os moradores, dos causos contados nos botequins, esquinas e de conversas de comadres nos portões, que através dos relatos familiares tomávamos contato. Posso afirmar que a grande maioria dos personagens e suas histórias são verdadeiras, porém, dando um zoom, a contribuição dos escritores.
L.L.: 7 - Safiras de Candinho se passa num bairro do Rio de Janeiro e de modo geral sua obra perpassa pela história do estado, não a história dos livros, mas aquela vivenciada pelas pessoas comuns que bordam o tecido social com suas existências. No caso de Safiras foi intencional essa ida às pessoas comuns e aos encantos de uma comunidade culturalmente muito rica?
J.L.: A História de Safiras de Candinho começa com a necessidade de me afastar por um tempo da Pentalogia, A Casa dos Deuses. Depois de escrever os dois primeiros volumes, Portais da Liberdade e Os Guardiães, para elaborar o terceiro, O Legado, precisava me ausentar do mergulho histórico, para depois voltar à sua construção, uma teia de valores altamente complexa. Neste ínterim as lembranças da infância e adolescência vieram à tona, principalmente a história da Pomba Gira que se apaixona pelo Ogan. Tendo como fio condutor o romance entre Antônio Candido e Maria das Neves, fui agregando novos personagens que emergiam das reminiscências daquela época. Lentamente a trama foi tomando forma e a riqueza cultural foi aflorando, num momento da Guanabara onde predominavam nos bailes todos os ritmos musicais, as rádios traziam as novelas, o teatro amador nos clubes encenavam peças. Todo este mosaico étnico, social, cultural e religioso se transformou na estrada por onde Candinho e das Neves percorreram.
L.L.: 8 - Falando em cultura e riqueza, você procura aproximar e observar as distintas culturas do espírito que servem de base a muitas comunidades do Brasil. Como se dá a sua relação com a espiritualidade que é tão presente em seus livros?
J.L.: A formação religiosa do Brasil pode ser vista por diversos olhares. A nativa, a consequente à diáspora africana, do degredo de ciganos, mouros e judeus, tendo a igreja católica como um dos pilares desta formação. Outro fator foi a chegada, na metade do século XIX, do espiritismo de Alan Kardec, intimamente associado à época, as práticas Hahnemannianas (homeopatia). Uma das consequências da presença de visões religiosas díspares é que de uma forma ou de outra foram sendo absorvidas, culminando no início do século XX, numa religião que tem os traços de todas as citadas, a Umbanda. Cavalcanti, nos anos 60, tinha na igreja do Apostólo São Pedro seu maior núcleo religioso. Independente da fé católica, conviviam os moradores com os centros espíritas e com as nações de raízes africanas. Cada rua tinha a suas rezadeira e benzedeira e foi dentro deste ambiente, indo as missas e festas na igreja; às sessões espíritas no centros espíritas; aos saraus do seu Sete da Lira; as saídas de iaôs das casas de Keto e Jeje, que cresci e onde aprendi a conviver e respeitá-las. Não abordar em meus romances sobre este patrimônio imaterial do nosso povo seria sair da nossa realidade religiosa. Somos um país mítico e místico. Cavalcanti não era diferente e abordá-lo sem fazer menção a esta característica seria omitir uma das suas faces.
L.L.: 9 - Inclusive seu olhar para as espiritualidades de matrizes africanas, nem sempre abordadas em nossa literatura. Podemos ver nisso também uma de suas características?
J.L.: Como disse, sou fruto do meio onde nasci e fui criado, não tenho como fugir das minhas raízes. Desde recém-nascido era rezado pelas benzedeiras, batizado, crismado, primeira comunhão, recebia passes nos Centros Espíritas, descarrego nas nações, ou seja, não tenho como negar ou fugir as raízes de onde veio minha fé, porque está ligada à cultura religiosa a que fui exposto em grande parte da minha vida.
L.L.: 10 - Para finalizar, como tem sido a recepção e suas expectativas com esse novo romance?
J.L.: Tenho recebido excelentes respostas tanto dos leitores quanto dos críticos literários. Existe um grande interesse dos meios de comunicação e da mídia ligada a Internet pelo romance e suas peculiaridades suburbanas, fugindo ao lugar comum do luxo e da riqueza. Um grande abraço.