10 Considerações sobre Jogos Vorazes ou fiquem vivos

 O blog Listas Literárias leu Jogos Vorazes, de Suzanne Collins publicado pela editora Rocco; neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro, confira:


1 - Em nossa lista de leituras desejadas há algum tempo, Jogos Vorazes entrega muita coisa e também abre-se para possíveis debates e reflexões acerca de diferentes conceitos que estruturam. Talvez o principal representante de um momento que as livrarias venderam muito do que era chamado de distopias juvenis, o livro realmente representa bem essa ideia de abrandamento das distopias citados pelo pesquisador Adam Roberts. Jogos Vorazes apresenta-nos um universo distópico, contudo, um tanto distinto das obras que caracterizaram a distopia enquanto gênero. Sobre essa e outras coisas que discutiremos neste post;

2 - O livro nos é narrado pela protagonista Katniss Everdeen, e aqui já temos implicações no sentido de que toda narrativa em primeira pessoa é de certa forma restritiva, ou seja, olhamos o mundo pelos olhos e conceitos de seu narrador ou narradora. Habitante de uma sociedade distópica, Panem, um "novo" soerguido no território do que fora a América (obviamente aos americanos, América é o próprio Estados Unidos), temos a presença de um governo autoritário que governa com as mãos firmes da opressão os doze distritos que constituem essa nação, organizados de acordo com as diferentes contribuições econômicas para a Capital, onde concentra-se o luxo e a riqueza da nação. Nesse sentido, os jogos vorazes surgem com instituição de lembrança do poder e da força desse poder central, por meio de uma disputa da qual apenas um vencedor de um dos distritos restará vivo para a glória e para a fortuna;

3 - E aqui começam alguns apontamentos que antes da leitura já chamava-me a atenção (vale frisar que assisti aos filmes, guardando, claro as distinções entre uma coisa e outra) e me deixavam com certa sensação de ser a obra um tanto superestimada (e não, não pensem que não gostei da leitura, é um entretenimento que pelo fluxo narrativo da ação realmente prende o leitor). A primeira questão, claro, quanto aos aspectos de novidade que foram creditados ao livro. Não consideramos tanto assim, afinal, Battle Royale, de Koushun Takami precede em muito a este livro e introduz esse subgênero que se tornou febre especialmente nos games. Além disso, há o conto de Stephen King que dá origem a um filme, O sobrevivente, de mesma premissa entre outros com maior ou menor semelhança. De fato, o "esporte" aliado ao espetáculo e universo dos realities há pelo menos duas décadas é abordado elos livros;

4 - Mas talvez a maior questão mais problemática seja a construção de relação com o gênero distópico. Não raro, e aí sim com algum acerto, Katniss é vista positivamente como uma protagonista que lidera a jornada "do" herói, e aí sim, temos algo relevante. Ela, para além de narradora, de fato é uma heroína (com alguma dose de problematizações que são necessárias) típica do gênero aventura, heroico, entretanto alguém distinto da distopia. As distopias enquanto alerta, enquanto um pesadelo do qual seus personagens e protagonistas são incapazes de escapar como gênero difere bastante do que vemos em Jogos Vorazes (primeiro livre). É de fato uma sociedade distópica ao fundo do romance, mas não é enquanto gênero uma obra que reúna tais características. Nas distopias o pesadelo persiste e, para além disso, os protagonistas de tais obras em maior ou menor grau possuem consciência de quem são e acima de tudo onde estão e pelo que passam, o que não ocorre com Katniss e aí residindo talvez nosso desconforto com a personagem;

5 - Diferentemente de um Winston Smith, de um John Selvagem ou de uma Offred, Katniss passa ao longe das tradicionais personagens distópicas e a grande diferença se dá justamente na relação para com tal sociedade. Há em Everdeen certa resignação com o sistema, uma aceitação muitas vezes acrítica que neste primeiro livro em pequenas nuances surge com Gale ou Peeta, personagem um tanto distinto do que vimos no filme (reforçando que nosso olhar é para o primeiro livro, sem observar como ocorre na sequência da série). Katniss parece-nos sempre um passo atrás da compreensão das coisas, algo que fica evidenciado pelo fato de ser a narradora do livro. Sua voz muitas vezes nos surge marcada pela "cegueira" das coisas e ao que este leitor incomodou mais, a plena aceitação das regras e do próprio jogo, não os vorazes, mas da existência social. Aliás, Katniss usa as regras do jogo e do espetáculo sem qualquer reflexão crítica acompanhada, tanto que o ápice de certa rebeldia se dá nos últimos instantes dos jogos com sua artimanha a la Shakespeare. Fora isso, até então, mostrou-se uma cidadã resignada de Panem, sobrevivendo a se modo e usando em benefício próprio tais estruturas sociais, como a glória, fama e riqueza por vencer os jogos... notemos que até  final deste primeiro livro, pelo menos, há tranquilidade em saber que, mesmo que Panem permaneça a coisa que é, ela e seu reduto círculo estará a salvo com fama e glória;

6 - Talvez possamos estar sendo cruéis com Katniss, entretanto, é que paira sobre o livro conceitos que e bem observados servem de combustível a doidivanas. A obra toda é marcada pelo olhar enviesado e um tanto apodrecido do jeito norte-americano de olhar o mundo, muito mais próximo do reacionarismo que uma revolução libertária. Aliás, o pessoal da extrema-direita no Brasil iria adorar esse livro e seu princípio que reverbera o mantra armamentista dando a entender que se as pessoas tivessem armas, Panem cairia.  Essa é das retóricas mais falhas, até porque já acompanhamos no processo histórico revoluções sem armas. O livro, contudo, impregna sutilmente esse mantra e cuja analogia se amplifica com a destreza de Katniss com o arco reforçando a ideia de que sua liberdade individual se dá graças à habilidade com essa arma;

7 - Mas são vários os pequenos incômodos com a protagonista que tipicamente uma heroína no molde de uma heroína, mesmo suas fraquezas são atenuadas de modo que fica entre a idealizada e a pessoa de vida rasgada e sofrida pela opressão distópica. Além disso, seu engajamento aos jogos e o modo como monta a estratégia de sobrevivência, não que seja um problema, mas por vezes parece que ela aceita-a sem reflexões mais profundas. Soma-se a isso o fato de que há certo desequilíbrio, por vezes ela compreende coisas com muita velocidade, em outras vezes parece estar cega ou dotada de pré-julgamentos que não auxiliam sua constituição;

8 - Tais elementos, obviamente, apontamos como forma de uma leitura crítica da narrativa, por vezes superestimada e que acaba entregando-nos de uma forma sedutora até, a aceitação e a resignação a elementos extremamente problemáticos como o espetáculo, e, mais que isso, não conseguindo escapar da ideia da violência heroica como única forma de valoração da liberdade, conceito que deixa esse grande tesouro de palavras como guerra e morte. Enfim, algo nos distanciou de uma celebração da personagem Katniss, sua postura, seu olhar restrito e ainda carente de muito aprendizado acerca do mundo e o fato de que sua narração ao menos até o final deste primeiro livro a despeito do modelo autoritário olha e diz "é isso que temos" e que para piorar esconde-se atrás de uma falsa premissa "ah, se tivéssemos armados..."

9 - E aqui vale frisar a questão do "sedutor". Sim, temos uma narrativa sedutora e envolvente, um livro marcado fortemente pela ação, pelo movimento e pela caracterização de uma sociedade distópica que embora futurista, alicerçada nos conceitos feudais. A ação é justamente o que nos gruda a cada nova página e algo que sempre mostrou-se ferramenta importante em obras cuja mensagem é um tanto dúbia ou nem tanto assim. Um livro que devoramos do princípio ao fim com tudo muito bem escalonado de tal forma que para muitos em sua publicação soou um tanto inovador;

10 De modo que, para encerrarmos nossa fala breve, consideramos uma boa experiência de leitura, aqui lida de uma forma um tanto mais crítica e aberta a contra-argumentações, mas que de modo geral revela-se uma leitura muito interessante e especialmente para quem procura tão somente pela ação, é coisa que o livro entrega com muito sucesso.

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