10 Considerações sobre Areia movediça, de Douglas Lobo ou sobre a indústria de panfletos

 O Blog Listas Literárias leu Areia movediça, de Douglas Lobo, publicado pela editora Danúbio; neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro, confira:


1 - Os pequenos esgares de chamado à consciência ou mesmo de crítica presentes em Areia movediça afundam no panfleto que se torna a publicação de Douglas Lobo. Como a grande maioria das obras que tentam adentrar aos recentes e infames momentos da política brasileira, a começar por 2013, o livro sucumbe através de uma figuração tola, da incapacidade de percepção mais complexa dos fatos históricos, especialmente esses movimentos de 2013, que à esquerda e a direita, na literatura que se tentou discutir tais jornadas, verdadeiro portal para o fascismo corrente, tiveram insucessos em retratar a questão, cada qual por suas motivações próprias;

2 -  Dito isso, não é nossa intenção adentrar neste post possíveis razões ou motivos para a falência das narrativas que adentra as jornadas de junho, trabalho dispendioso e longo. Todavia, a lembrança é necessária, pois temos visto muitas obras que tentam de alguma forma entrar nessa querela, das que lemos aqui no blog, todas elas um tanto problemáticas; especialmente em narrativas que filiam-se explicitamente ao pensamento de direita e conservador, e aqui nada contra tal pensamento, desde que não se deixe implícito que tais pesamentos rumam para o extremo do espectro e veladamente sustente ideias próximas ou mesmo integradas ao recente projeto autoritário presente, que começa com junho de 2013, perpassando pelo golpe imposta à Dilma Roussef até a ascensão deste proto-ditador chamado Bolsonaro;

3 - E aqui já procuramos nos diferenciar da pobreza figurativa presente nas narrativas de direita que tentam contar suas versões da história por meio da literatura. Areia movediça cai em problemas construtivos como o tal Império do Oprimido, do tal de Fiuza e outras obras que mostram-se no decorrer do caminho de tomar coragem para nomear o que falam ou então construir um mundo ficcional independente, mas capaz de discutir o problema. O que quero dizer com isso é que as figuras de linguagem em tais obras são de extrema pobreza que no mínimo retratam o desprezo da autoria por seu público, por seus leitores. Partimos da ideia que ao autor pede-se duas decisões importantes, ou constrói do nada seu universo ficcional como tantos bons autores o fizeram com o realismo mágico nesta nação, ou tenha o ímpeto e ousadia de não temer mesclar suas personagens ficcionais com as personagens histórica. Entretanto, nas obras à direita, geralmente temos uma estratégia um tanto questionável de indefinir o que desejariam de fato assumir, de modo que em vez de ambientar suas personagens em meio à crise e o governo d PT, fogem do campo com o genérico, "governo trabalhista". Pior ainda a menção a Olavo de Carvalho, na obra com a identidade adulterada, mas citação tão explícita que se torna um tanto condenável tal escolha. Talvez, no íntimo sabedores do próprio engano, o pensamento dessa extrema-direita tenta esconder às sombras de qualquer afirmação, seja lá por qual temor que seja;

4 - Vejamos que até pouco falamos da narrativa. O livro narrado em uma primeira pessoa que por estratégia tenta levar o leitor a uma adesão forçada pelos usos da segunda pessoa, trata da jornada de um jornalista insatisfeito e frustrado que sai de Fortaleza para trabalhar no Rio de Janeiro em "uma estatal petróleo". Observe-se que na obra em nenhum momento há a coragem necessária de utilizar a palavra Petrobras, de modo que o uso genérico ao leitor crítico fortalece esse incômodo. No Rio esse jornalista "seduzido" pelos companheiros "progressistas" sente-se geralmente um peixe fora da água por não conseguir adaptar-se na plenitude hedonista da metrópole. Enquanto os acontecimentos em nível macro vão desvelando um país envolto à corrupção, aos poucos ela recai sobre o jornalista que aos poucos começa uma jornada de questionamento das condutas e posturas de seus colegas progressistas, dos gestores da nação e assim é tragado ao simulacro mal-disfarçado do Olavo de Carvalho;

5 - O panfleto que vai se transformando o livro a cada nova página desnuda-se de modo incômodo ao leitor crítico. Na verdade, os potências pontos de acerto ou inflexões interessantes vão sumindo cada vez mais que o livro vai assumindo seu caráter panfletário. Isso é um problema grave que ao cabo prejudica os questionamentos que pretende fazer o autor. E, diga-se, há no decorrer do romance o mexer em feridas e contradições de uma boa parte dos "pensadores progressistas", o que de modo algum significa mesmo êxito em questionar "o pensamento progressista". Há um caminho delicado procurar o avanço civilizatório por meio da postura de determinados grupos, o que, convenhamos, são questões um tanto diferentes. Além disso, embora com alguns lampejos e questionamentos válidos, o entorno a essa crítica faz com que elementos importantes para a discussão se perca;

6 - Talvez isso ocorra porque o narrador-protagonista de certo modo reflita a desorientação dos tempos presentes. Faustino é uma figura desorientada e como o próprio assume-se, alguém com um incômodo persistente e cujas raízes parecem não chegar ao próprio. Aliás, isso é um prato cheio para sua adesão ao discurso evangelizador e religioso ao qual sucumbe o narrador na parte final da narrativa, tal qual muitos do espelho do qual Lobo tenta verter sua trama. De um questionamento político a narrativa parte para uma ação missionária tão em voga em tempos de riscos de um Estado teocrático. Tal escolha pode conter algumas razões, a desorientação, por exemplo, que ao sujeito incapaz de lidar com o caos que é a existência humana e a liberdade de viver sem um Deus vigilante e opressor a ordená-lo diuturnamente. Desorientação causada pela incapacidade de parte de nós conceber um mundo o qual nós somos responsáveis pelo próprio mundo. Nessa incapacidade de enfrentamento de um mundo como tal, o sujeito, desorientado e incapaz de satisfazer-se com a realidade caótica, obviamente, como um cavalo domado de sua força e liberdade, atira-se novamente a uma fé destituída dos princípios da razão. Faustino, nesse sentido, é cria de seu tempo;

7 - Há também de se por nessa balança o peso da frustração. O avanço global desse extremismo em direção ao espectro profundo e extremo do pensamento de direita está intimamente ligado à frustração. Não somos nós que qualificamos Faustino, o narrador-protagonista, como frustrado, ele próprio, entrementes, divergimos do diagnóstico. Faustino procura a resposta em uma religião arcaica e pouco racional, caminho simples ao tolo, enquanto, para nós, a questão é outra. A fachada bem-sucedida que não sustenta o próprio narrador, tampouco nós, esconde o fato que o narrador termina o romance incapaz de identificar: a frustração não está no fato de ele ter tido tudo o que desejava, de ser bem-sucedido, de viver o hedonismo pleno, pois que, ao leitor atento, a bem da verdade ele nunca foi isso e tampouco participou do grupo a quem aparentemente pertencia. A frustração não se dá pelo fato de saborear o sucesso e vê-lo pecaminoso, ínfimo ou coisa semelhante. A frustração sempre residiu no fato de que ele nunca alcançou o que procurava, realmente viver a cultura da metrópole progressista (para qual, desde o princípio expõe seu ranço);

8 - Observe que diferentemente dos integrantes do grupo social a que participa, absortos e envoltos pela cultura da metrópole, inclusive as liberdades hedonistas, Faustino por sua vez, jamais conquistou algo. Não conquistou uma posição maior de chefia, nunca conquistou uma mulher, com as quais precisava pagar - diferentemente das orgias de seus amigos, as quais parecia invejar. No fim, Faustino irrompe como espelho do cidadão médio, frustrado, incapaz de aceitar o lidar a liberdade do outro, com o persistente sentimento se ser prejudicado, deixado para trás, no fundo relato extremo de uma figura narcisística que pretensamente julga-se portador de qualquer missão, uma criatura especial que a partir de seu reencontro com Deus poderá impor derrota aos impuros e a glória aos justos e bem comportados; Figura perfeita, portanto, para as tolas ideias de um guru mequetrefe cujo maior sucesso é constituir uma persona única capaz de hipnotizar mentes frágeis marcadas a ferro pelas frustrações humanas; 

9 - Além disso, gostaríamos ainda de frisar de outro problema de Faustino. A falta de coragem que somada a frustração, de um modo talvez inesperado, o autor acaba nos entregando um sujeito que reflete parte dos desorientados destes tempos. Falo da coragem, no caso de sua ausência, o fato do protagonista permanecer incapaz de romper bruscamente com um grupo sem antes ter de ser aceito, ou ao menos participar de um novo rebanho. Ocorre que só após sua adesão ao olavismo, a segurança de um novo rebanho ao seu lado é que ele consegue romper com seus amigos "progressistas";

10 - Enfim, na presente avaliação nos dedicamos a tratar de diferentes aspectos da obra, de modo crítico e reflexivo apontando os incômodos trazidos pelos conceitos, pelas ideias contidas na narrativa, que de modo geral, no plano linguístico é bem construída por Douglas Lobo. Com isso queremos dizer que não se trata do fato de não gostarmos da leitura, pelo contrário, que a partir dela - e graças a boa execução do autor - podemos nos concentrar no essencial de uma leitura literária, a ideia. A ideia contida na narrativa a este leitor, pelo menos, ao cabo revela-se frágil, panfletária e missionária descambando para um moralismo cristão pregado por uma alma - Faustino - frustrada com seu insucesso em experienciar as "imoralidades" da vida. Faustino perpassa a narrativa como um corpo sem baile no qual dançar e talvez o que algum dia possa salvar a narrativa seja o fato de que ao não avançarmos na "pretensa" redenção religiosa e conservadora do protagonista, haja algo ainda em aberto, um pequeno espaço de dúvida, a dúvida tão importante para o fazer literário.

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