10 Observações sobre Anos de Chumbo e Outros Contos ou um retrato melancólico de um país estacionado no tempo

Mais um post em parceria com a disciplina de Narrativas Brasileiras Contemporâneas, da UFPEL e novamente um trabalho abordando Anos de Chumbo, de Chico Buarque. Dessa vez a análise transformada em lista literária foi realizada graduanda Caroline Blank Mesquita, confira:


1 - Anos de chumbo e outros contos, publicado pela Companhia das Letras em 2021, é o primeiro livro de contos de Chico Buarque, depois de ter publicado seis romances e ter sido consagrado com prêmios importantes pela sua contribuição na música e na literatura nacional. O livro reúne oito narrativas curtas com histórias diversas e independentes umas das outras, mas isso não significa que elas não se conectem. Chico consegue organizá-las de tal forma que quando terminamos e fechamos a obra, é como se tudo fizesse sentido e as histórias se amarrassem. Isso se deve principalmente a atmosfera que transpassa por todas elas, todas perecem carregar um certo tom melancólico e trágico sobre a nossa sociedade, nos fazendo refletir sobre as mazelas que nosso país perpetua; 

2 - O livro começa pela sua narrativa mais impactante – Meu tio. Um conto narrado por uma menina, que não sabemos exatamente a idade, mas aparenta ser uma pré-adolescente, que é abusada periodicamente pelo tio miliciano com o aval dos próprios pais, que apenas se preocupam que ela não engravide do familiar. Isso é apresentado de uma forma muito natural e fluida, ainda mais sendo narrado pela menina, que não consegue dimensionar totalmente o que está ao seu redor, já que aquela é sua rotina, da mesma forma que situações assim são comuns em muitas famílias e nós, como sociedade, nos acostumamos a ver isso nos noticiários;

3 - Por esse início, podemos imaginar que as narrativas seguirão um rumo muito pesado até o final da obra e alguns leitores podem até ter receio de continuar a leitura. No entanto, depois do choque inicial, o livro traz narrativas um pouco mais leves, algumas até com momentos cômicos, como a mistura de realidade e delírios de um jovem sonhando com os artistas na antiga Copacabana, no conto de mesmo nome, ou a confusão com o “grande artista” no aeroporto em Passaporte; 

4 - As narrativas transitam entre passado e presente, sendo o passado sempre relacionado a época da Ditadura Militar no Brasil como em Os primos de Campos que traz as memórias de um jovem e sua família durante esse período difícil e o conto que dá nome ao livro, Anos de Chumbo, que apresenta a visão de uma criança sobre o ambiente violento que vivia. O presente em alguns é indefinido, já em outros temos referências ao período da pandemia atual, é o caso de Meu tio, que cita rapidamente o uso de máscaras e O sítio, onde um casal que acabou de se conhecer resolve se isolar da pandemia junto;

5 - Além dos contos já citados aqui ainda temos Cida, cujo o tempo em que ocorre é incerto, onde um homem conta um pouco sobre sua amizade inusitada com a moradora de rua Cida e Para Clarisse Lispector, com candura que se passa no período do auge da carreira da escritora e apresenta o amor platônico de um jovem aspirante a poeta por ela;

6 - Apesar de algumas histórias serem mais leves do que outras, todas carregam uma certa melancolia, seja sobre as memórias do passado, seja sobre as situações tristes que muitas pessoas passam no nosso presente. Dessa forma, acabamos por inferir uma reflexão geral escondida nas entrelinhas: nosso país está estacionado no tempo. Nossos problemas se perpetuam e o absurdo se tornou rotina, enquanto vivemos uma falsa sensação de real evolução como sociedade;

7 - O conto que está no título do livro é o último da sequência. Ele finaliza muito bem a obra e apresenta uma forte conexão com o primeiro, Meu tio. Assim como esse, ele também é narrado por uma criança, um menino deficiente, que também vive em um lar violento em um dos anos mais obscuros do Regime militar. A narrativa transita entre a inocência dele falando sobre seu amiguinho e narrando suas batalhas com os soldadinhos de brinquedo e a brutalidade das surras que leva de seu pai e sua percepção dos horrores sobre as torturas da ditadura que ele escuta dentro de casa, já que seu pai é um militar e o amante de sua mãe também. O menino, assim como a menina do primeiro conto, parece acostumado com a rotina de violência, mas o final da narrativa nos reserva uma surpresa. Ele se “vinga” de seus pais, trancando-os dentro de casa durante um incêndio causado, acidentalmente, por ele próprio e a cena final descrita é ele tomando um sorvete enquanto assiste as chamas engolirem a casa;

8 - A conexão entre o início e o final da obra acaba deixando mais claro o que foi dito anteriormente: nossos problemas continuam os mesmos. Duas crianças, uma no presente e outra no passado sofrem no ambiente onde deveriam se sentir acolhidas, o familiar. E demonstra qual pode ser o resultado dessa violência. Uma criança capaz de fazer o que o menino fez, será capaz do que quando for adulto? Perpetuar a violência que sofreu, talvez seja uma resposta;

9 - O livro não poderia acabar com uma cena mais emblemática, que pode ser entendida como uma metáfora. O menino somos nós, assistindo o nosso país ser consumido pelo fogo, completamente alheios a isso tomando um sorvete, porque é muito mais fácil se manter assim ou porque sentimos que já perdemos  a batalha há muito tempo, não nos sentimos capazes de agir para mudanças ocorrerem;

10 - Dessa forma, a obra nos propõe uma reflexão geral sobre a nossa realidade,mas cada conto nos leva a reflexões específicas como a naturalização do abuso infantil (Meu tio), o ódio a classe artística (Passaporte), a invisibilidade da população de rua (Cida) e o horror do período ditatorial no Brasil (Os primos de Campos e Anos de Chumbo). Chico Buarque consegue nos tirar da zona de conforto e nos fazer pensar, sem perder o objetivo de entreter, já que todas as histórias são interessantes e prendem nossa atenção, até mesmo as que aparentemente contariam situações banais. 

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