Che, 10 considerações sobre O Jogo da Amarelinha, de Julio Cortázar

O Blog Listas Literárias leu O Jogo da Amarelinha, de Julio Cortázar publicado pela editora Companhia das Letras; neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro, confira:

1 - Antes de mais nada, sempre procuro ressaltar nas avaliações de obras já consagradas na discussão crítica, caso deste O Jogo da Amarelinha, de Julio Cortázar, o grande desafio de buscarmos perspectivas que possam trazer algo além da farta leitura crítica que romances como este possuem. Todavia, aqui sempre procuro apresentar aos leitores do blog uma leitura particular e própria do romance. Dito isso, vale lembrar ainda, enquanto introdução, destacar o belo conjunto desta nova edição (2019) do livro pela Companhia das Letras, com um projeto gráfico exuberante e o acréscimo ao romance de materiais como cartas do próprio Cortázar acerca do livro, e três artigos críticos, um de Haroldo de Campos, um de Julio Ortega e outro de Vargas Llosa. Tais acréscimos, verão, que contribuirão para o processo de leitura e mesmo de interpretação das contradições e complexidades, deste que foi recebido com um divisor de águas na literatura latino-americana;

2 - Isto posto, tem-se que obrigatoriamente iniciar a discussão por aquilo que acaba marcando esteticamente a estrutura do romance em suas pretensões de antirromance. O leitor no princípio é chamado a fazer uma escolha, a opção pela leitura linear das duas partes do romance, ou, no espírito do saltear da amarelinha, enveredar-se por uma sequência "aleatória" em que o romance é ampliado por capítulos interessantemente chamados de prescindíveis, algo que, pelo menos a este leitor, é uma opção tão ilusória quanto os devaneios do protagonista, Horácio Oliveira, que numa espécie de Dr. Bacamarte em O Alienista, vai esgarçando cada vez mais as fronteiras entre a lucidez e a insanidade. Além disso, a escolha do leitor e a disposição das formas de leitura evidenciarão o provável maior "pecado" ou a denúncia à obra, que são suas matizes misóginas e machistas;

3 - Ficará claro, especialmente nas correspondências de Cortázar agregadas a esta edição de que a primeira escolha dada à leitura, o próprio autor definirá como uma escolha do leitor-fêmea, termo carregado de preconceitos e, por isso, não menos cheio de enganos. Aliás, a questão da crítica ao leitor-fêmea estará presente internamente ao romance, um modo de que o autor encontra para caracterizar-adjetivar leitores que em sua perspectiva fujam da complexidade, da intelectualidade, afeitos a dramas sentimentais e baratos. A própria escolha do termo, no original Lector hembra, já é bastante carregada, entretanto, o machismo misógino no romance acaba sendo ainda mais violento na constituição de suas personagens femininas, como Maga e Talita, desprovidas pelo autor de traços intelectuais, não raro, apresentadas como tontas ou bobas em meio a conversa daqueles que tudo sabem, os homens. Isso fica mais claro, então, quando nos dedicamos a ler o material complementar da edição, sendo que numa das cartas que Cortázar responde às críticas de o romance ser intelectualizado demais ele contragolpeia mostrando que não há mulheres inteligentes no romance. Essa é uma discussão que permeia todo o romance, valendo ressaltar que o próprio autor discutirá isso posteriormente numa entrevista ao El País em 1984 reconhecendo o machismo presente no livro;

4 - Mas retomando a questão da estrutura e da forma de apresentação do romance, temos, portanto, dois caminhos a seguir. No caso deste blogueiro, a opção fora a de ler a narrativa em seu todo, pois que o bom leitor haverá sempre de desconfiar do autor e suas indicações, visto que são todos afeitos a chistes e provocações ao leitor, como um clássico no futebol em que Inter não existe sem  e o Grêmio e o Grêmio não existe sem o Inter. Assim, se um autor aponta ou esconde algo, temos que desconfiar e nos jogar à nossa procura. Neste caso, inclusive defendo que os capítulos prescindíveis não são tão prescindíveis assim, como já volto a falar;

5 - Antes, observemos que numa leitura linear o romance se dividiria em duas partes, a primeira, Do lado de cá, com um Horácio perambulando pelas ruas parisienses em conversas noturnas e intelectuais enquanto também lida com o romance com a uruguaia Maga, e os sentimentos para com a distante Argentina, numa típica relação de acidez e saudade. Há de se observar ainda nesta primeira parte é que as discussões intelectuais e teóricas levam a Horácio desfilar algumas teses de doutorado enquanto vive a luta interna entre o empirismo, a dialética e o metafísico, aqui marcado fortemente pela filosofia budista. Na segunda parte do romance que kaput no capítulo 56, Do lado de cá, Horácio retorna à Argentina perambulando por uma Buenos Aires com agitações políticas as quais o romance e Horácio passam ao largo. Nesta parte vivencia um insólito triângulo com o amigo Traveler que curiosamente nunca viajou e a esposa Talita, perambulando entre um circo e um manicômio enquanto carrega um tumular silêncio de suas experiências em Paris e trava um duelo silencioso e estranho com Traveler até paft, e acabou-se;

6 - Este seria um dos caminhos de leitura do livro, e a despeito do que pensa Cortázar, vale dizer que não seria de todo modo escolha simples ou menos exigente ao leitor. A segunda escolha de leitura faz com que leiamos estas duas partes de forma salteada - e indicada pelo autor, o que confere certo autoritarismo semelhante à primeira escolha - somando-se a elas os tais capítulos prescindíveis. E são diversas as coisas que neles encontramos, como o personagem Morelli, que por si só já é capaz de demonstrar que os capítulos prescindíveis não o são bem assim. Morelli é um escritor (que inclusive se lido da forma primeira surgirá sem grande destaque) que nesta segunda escolha, não apenas atua como personagem, mas como provável alter ego de um Cortázar teórico que discutirá o romance, o antirromance, fortalecendo com isso o caráter de metaliteratura da obra. Nesta terceira parte teremos além das morellianas, diferentes recortes e excertos de textos [e também partes do romance] que muitos chamam na técnica de bricolage, algo que foi visto como vanguarda por parte da crítica. Nesse aspecto específico, contudo, convém lembrar que Oswald de Andrade em seu Memórias Sentimentais de João Miramar já se antecipava nesta técnica das artes plásticas transposta para a estética literária;

7 - Entretanto, creio, que talvez a maior declaração de imprescindibilidade desta terceira parte seja a fuga que esta permite ao autor depois da passagem que, aos olhos deste leitor, é a maior pancada de todo romance, o capítulo 28. Nele todas as desgraças e complexidades do romance estão presentes. Um cena dotada de grande força do infamiliar, em que sombras humanas discorrem fortes e contundentes discursos intelectuais enquanto postergam o encontro com o derradeiro, com a tragédia, com a morte. Nesse capítulo todas as covardias se afloram, assim como todas as contradições e complexidades provocadas pelos conflitos internos de seus personagens. É de fato um forte soco na boca do estômago do leitor, tão forte que temos a sensação de que, ou Cortázar apieda-se de nós, ou faz então como Oliveira. Foge. Digo isto no sentido de que é após este capítulo que teremos a maior fuga (em se escolhendo a segunda leitura) aos capítulos prescindíveis. O autor não quer voltar ou nos levar tão cedo às consequências dos capítulo 28, e isso, penso, é bastante declarativo e põe por queda a prescindibilidade desta terceira parte;

8 - Aliás, como de costume nos romances de excelência, vale dizer com o exposto até aqui podemos mostrar que o livro permite-nos então uma grande gama de entradas à leitura e diferentes interpretações e reflexões, como a discussão teórica do próprio romance e das pretensões do autor deste jogo vir a ser uma espécie de antirromance. Nesse sentido, não seria capaz de afirmar totalmente o êxito do autor, no conjunto, parece-me que não se nega aqui o romance, pelo contrário, se o fortalece, mas essa seria uma questão a se levar para espaços mais amplos de discussão. Independentemente disso, é inegável enquanto conjunto, a natureza metaliterária da obra;

9 - Mas se a discussão acerca do romance e da literatura é um aspecto forte do romance, vale dizer que não menos o conflito estabelecido nas artes desde o iluminismo, entre o empirismo e o metafísico. Nesse campo teremos o reforço das ambiguidades do protagonista Cortázar, Oliveira. Nem francês, nem argentino. Na França e na Argentina. Em nenhum dos dois. Os dois. Essa dualidade não resolvida se situa também entre o intelectual que nega-se a jogar as farsas do mundo e o sujeito metafísico, impactado por Buda e que vê no céu da amarelinha uma metáfora à transcendência. Nenhum, nem outro, ambos, nada, tudo. Trata-se de um embate sem solução, algo que talvez o final circular da segunda leitura reforce tal percepção. Como se houvesse na obra a procura por uma terceira margem do rio;

10 - Enfim, O Jogo da Amarelinha é leitura necessária, tanto em suas contradições como naquilo que trouxe de vanguarda e relevância para a literatura latino-americana. Uma leitura que não é simples, é bem verdade, mas uma leitura que para além do romance mostra-se eficientemente um ensaio filosófico e intelectual de temas que ainda estão em suspenso para debate e que volta e meia surgem com maior força na sociedade. Além disso, de modo geral traz aquele gosto amargo de um bom tango argentino.


  

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