Primeira mulher a vencer o Prêmio São Paulo de Literatura, designer, editora e escritor, Ana Luisa Escorel concedeu entrevista ao Blog Listas Literárias, falando não apenas de seu recente lançamento, Dona Josefa, mas sobre literatura e também Brasil. Confira neste post nossas 10 perguntas à autora:
L.L.:1 - Dona Josefa é um romance constituído de recordações e leituras pessoais como revelado no posfácio. Conte-nos um pouco mais das motivações que te levaram a escrever o livro.
A.L.E.: O que me levou a escrever esse romance foi o interesse por uma personalidade feminina poderosa – a se medir pela liderança que ela teve na Revolta Liberal de 1842, na região Araxá – num tempo em que o trajeto destinado às mulheres, na sociedade brasileira, ia do parto ao tacho de doce. Por outro lado, o fato de se conhecer quase nada acerca de Josefa dava margem a muita invenção, circunstância sempre atraente para qualquer ficcionista.
Também me parece fazer sentido mencionar que a presença dela, na casa em que nasci, era constante já que havia a reprodução fotográfica de um daguerreótipo de grupo com seis pessoas, entre as quais Josefa, permanentemente pendurado na parede do hall de entrada, pelo qual se passava várias vezes por dia. Sem esquecer as conversas recorrentes dos mais velhos lembrando histórias e personagens – entre as quais a própria Josefa – ligadas ao universo familiar de minha avó paterna.
L.L.: 2 - Enquanto romance histórico o livro é uma narrativa potente de um, dentre tantos períodos turbulentos de nossa história. Nesse sentido, quais os desafios que encontrou na escrita enquanto gênero, e como você vê o papel do romance histórico na literatura nacional?
A.L.E.: Não sou leitora de romances históricos e nem esse é um gênero literário que me atraia particularmente embora goste muito de Guerra e Paz, de Tolstói, e da Cartuxa de Parma, de Stendhal, que se utilizaram de fatos reais ocorridos num determinado período para situar a trama das respectivas narrativas. De qualquer forma, na minha opinião, não é propriamente o fato histórico que dá fascínio às narrativas que se utilizam dele, mas a maneira como pode vir a ser absorvido, no plano literário, pela habilidade ficcional de quem escreve.
No tocante aos desafios postos pelo gênero me parece existir alguns. Antes de mais nada é importante um mínimo de informação acerca da época escolhida, informação nem sempre presente quando o escritor define o tema, obrigando-o a algum empenho para levantar dados,exatamente como ocorreu no caso de Dona Josefa.
Depois, é preciso também, me parece, certo senso de equilíbrio de modo a conferir verossimilhança ao tom geral dos diálogos, hábitos e costumes descritos, assim como das formas de relacionamento entre os personagens, condições que, para existirem literariamente, de maneira convincente, precisam fugir do artificialismo próprio das abordagens postiças, sempre inadequadas.
Quanto ao romance histórico feito no Brasil, lembro de ter lido com prazer e interesse – entrando na adolescência – O tempo e o vento, de Erico Veríssimo.
L.L.: 3 - Dona Josefa é, claro, uma obra sobre a personagem que nomeia o romance, mas poderíamos dizer também que trata-se de uma narrativa sobre certa [e perniciosa] tradição autoritária no país?
A.L.E.: Seria difícil concentrar a narrativa em uma representante de certo extrato da oligarquia brasileira do século XIX, como Josefa, e omitir os compromissos mantidos pela personagem com uma sociedade escravocrata, autoritária, injusta, escamoteando as distorções graves daquele período, muitas delas presentes de maneira perversa até hoje no cotidiano brasileiro.
L.L.: 4 - Aliás, em nossa leitura comentamos que o romance, embora ambientado em meados do Século XIX, apresenta comportamentos ainda presentes em nossa sociedade e que mesmo distantes, nosso presente e esse passado de violência e polarização, unem os dois tempos. Estamos deixando de aprender algo desde o Império?
A.L.E.: Das características mais desanimadoras da experiência histórica dos brasileiros parece ser, justamente, a tendência para repetir padrões negativos que, assim, acabam indo e vindo de maneira mais ou menos cíclica, entra ano, sai ano. Como se, o tempo todo, fizéssemos com uma mão para destruir com a outra. Provavelmente isso ocorre porque valorizamos pouco o passado e não usamos, como consequência, os meios que ele fornece para identificar problemas que vivem travando nosso destino enquanto nação. Quanto mais insistirmos em cultivar desvios que se acumulam e se reproduzem há séculos, menos chance teremos de atingir o formato que o Brasil vem ensaiando, faz tanto tempo, de apoiar a identidade profunda em traços originais e positivos, se considerados na comparação com outros países.
L.L.: 5 - Falemos um pouco mais de Dona Josefa, protagonista do romance. Uma mulher a frente de seu tempo? Qual importância, ainda que com as tintas da ficção, de trazer à luz esta personalidade histórica?
A.L.E.: O motivo da escolha de uma personagem com as características de Josefa resultou, entre alguns outros, da vontade de chamar atenção para a ocorrência – excepcional, no Brasil – do isolamento em uma solitária, por dois meses e meio, de uma senhora da oligarquia, situação improvável num país como o nosso que fecha sistematicamente os olhos para as faltas cometidas pelas classes dominantes. Salvo engano, as circunstâncias da prisão de Josefa são únicas e não encontram equivalente em nenhum outro momento do século XIX brasileiro – ou mesmo de momentos anteriores a esse período – vividas por pessoas do seu sexo e estrato social. Além disso, o objetivo do romance era mostrar, ainda, como a natureza de certas circunstâncias odiosas, comuns no tempo em que ela viveu, continuam se reproduzindo de forma semelhante, perpetuando o autoritarismo, a injustiça social e a violência.
L.L.: 6 - Saindo um pouco do romance, em 1999 você fundou a Ouro sobre azul, empresa focada no design gráfico e também na edição e publicação de livros. Poderia compartilhar conosco esta experiência, bem como, a relação entre livros e design e sua importância?
A.L.E.: O livro talvez seja dos mais extraordinários objetos já concebidos, no que se refere ao aspecto físico e ao potencial transformador. Portátil, livre da necessidade da reposição de peças, resistente a quedas e manuseio, barato, se comparado a outros produtos industriais, sua trajetória segue firme desde que Gutemberg abriu o caminho para libertá-lo dos círculos da aristocracia, da Igreja e da burguesia, que dominavam o poder na Europa, nos finais do século XV.
No princípio, signo de prestígio, o livro veio se democratizando, cortando seus aparatos até chegar à forma atual, em capa mole ou dura, ampliou suas possibilidades de comunicação destacando-se, pela racionalidade que lhe é própria, dos muitos sistemas de geringonças inúteis que nos cercam, concebidos para consumo frenético e fruição reiterativa. Isso, graças à carga de informação que pode encerrar em sua simplíssima anatomia: um conjunto de lâminas sequentes, leves e finas, protegidas por duas outras mais espessas, ligadas entre si pela lombada, segmento para onde todas convergem, dedicadas guardiãs dos universos infindáveis da imaginação criadora.
A tarefa do designer/editor é dar qualidade a esse objeto ímpar – qualidade cultural, estética e ergonômica – resolvendo as questões postas pelas etapas de edição, projeto gráfico, fabricação e, em alguns casos, podendo chegar à distribuição, como ocorre na Ouro sobre Azul. Além disso, o designer/editor de livros tem a vantagem de poder dominar todo o processo implicado na edição e na fabricação, mantendo sob seu controle os estágios indispensáveis à unidade formal do produto.
L.L.: 7 - Quais têm sido os desafios enquanto editora de livros? O cenário da literatura ainda é uma grande incógnita nesse país?
A.L.E.: Barreiras de toda a sorte são quase intransponíveis para uma editora pequena em um país que não valoriza nem a educação nem a cultura, justamente o terreno no qual trabalhamos. Nesse ambiente, a Ouro sobre Azul produz os chamados "livros de fundo", aqueles que não dependem da moda, nem dos lançamentos espetaculares. Nosso compromisso é com a qualidade do texto tanto no que se refere à sua natureza, quanto no que se refere a seu aspectos editorial e gráfico, fruto do cuidado com que costumamos tratá-lo. Caminho nada fácil de ser trilhada num país em que o público leitor é reduzido e pouco exigente.
L.L.: 8 - Dona Josefa tem suas mãos em praticamente todas as etapas de publicação, considera isso uma possibilidade interessante a autores?
A.L.E.: De fato, no meu caso, a designer, a editora e a escritora se combinam em uma só pessoa. Não se trata de condição buscada para dar vivacidade a meu cotidiano, digamos assim, mas dado próprio de um perfil profissional que foi sendo construído ao longo dos anos. Acabei por concentrar essas três funções que, em certas etapas da feitura do livro, podem atuar de forma simultânea, cuja prática me dá grande prazer e permite controle estreito de todo o processo de edição.
L.L.: 9 - Retomando o romance, que tipo de contribuição pensa que ele pode dar para nossa literatura?
A.L.E.: Não tenho instrumentos para responder a essa pergunta. Caberá ao leitor, não a mim, decidir que posição Dona Josefa virá ocupar no quadro da literatura brasileira contemporânea.
L.L.: 10 - Para finalizar, gostaríamos que compartilhasse um pouco sua visão sobre o fazer literário e quais os desafios e problemas da literatura brasileira, além é claro, das suas potencialidades? Por que fazer literatura ainda?
A.L.E.: Na minha maneira de ver, no mundo de hoje – e também nos que estão por vir – se deveria fazer cada vez mais literatura porque é da natureza da escrita ficcional permitir uma liberdade praticamente absoluta ao criador. Maior, inclusive, que em outras formas de expressão artística. E isso, não apenas dada a maneira como os textos ficcionais surgem para a vida – na módica reclusão dos que escrevem – mas dadas, também, características próprias aos meios que envolvem a feitura do livro, produto industrial infinitamente mais barato se comparado a tantos outros também reproduzidos em série. Nessa direção, bom exemplo para um paralelo é o filme, que exige aparatos portentosos e caros para ficar de pé e chegar ao espectador. Então, quanto maior o investimento no produto, menor tende a ser a cota de liberdade do criador comprometido com nele, já que o retorno financeiro precisa compensar o investimento e, portanto, o público deve necessariamente ser "fisgado" a partir de sua proverbial preferência por ofertas que encerrem pouca dose de informação nova. Enquanto que para os autores de ficção literária verdadeiramente comprometidos consigo mesmo, com a escrita e a estrutura do texto, a liberdade pode não ter limites. Exatamente em sentido contrário do que costuma ocorrer com a arte comercial, seja no segmento que for, onde tudo é feito a conta-gotas, na medida exata para atender a noções conhecidas, plasmadas na expectativa do público.
Agora, fazer literatura no Brasil não é fácil pela fato do país ter grande parcela da população iletrada, na qual o apreço pela cultura, de modo geral, pequeno.
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