10 Considerações sobre O Infamiliar, de Sigmund Freud, ou sobre coisas estranhas e inquietantes

O Blog Listas Literárias leu O Infamiliar da coleção de obras incompletas de Sigmund Freud publicado pela editora Autêntica; neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro, confira:

1 - Edição comemorativa de 100 anos da primeira publicação de Das Unheimliche, célebre ensaio de Sigmund Freud,  em O Infamiliar, além desta nova proposição de tradução para o termo, que no Brasil já foi traduzido como inquietante ou estranhamento, reúne uma série de artigos sobre o texto de Freud e suas diferentes implicações, além do próprio ensaio em edição bilíngue e o clássico conto de E.T.A Hoffmann pelo qual Freud conduz a argumentação de seu ensaio. Isto, claro, faz da publicação ótima fonte de estudo e pesquisa;

2 - Como introdução e apresentação do volume, o livro abre com o texto "Freud e o infamiliar", de Gilson Lannini e Pedro Heliodoro Tavares em que os organizadores do volume discutem especialmente os desafios de tradução do texto. Como eles lembram sobre Das Unheimliche "trata-se, é verdade, de um caso único no vocabulário freudiano, em que o próprio autor dedica-se exaustivamente, ao longo de todo o texto, a uma investigação filológico-lexical  acerca de um vocábulo passível de diversas leituras e interpretações".  Além de debater o texto de Freud e diferentes aspectos da tradução, neste artigo os autores aproveitam para argumentar sobre a escolha do neologismo infamiliar*;

3 - Na sequência teremos o ensaio famoso de Freud, em edição bilíngue, onde ele trata do infamiliar, No texto Freud diz que "não há nenhuma dúvida de que ele diz respeito ao aterrorizante, ao que suscita angústia e horror, e, de todo modo, estamos seguros de que essa palavra nem sempre é utilizada num sentido rigoroso, de tal modo que, em geral, coincide com aquilo que angustia", contudo ele avança no estudo dessa palavra-conceito de modo a pesquisar o "que permite diferenciar, no interior do angustiante, algo "infamiliar"";

4 - A partir dessa provocação, Freud com sua imensa capacidade argumentativa perpassará pela psicologia, pela filologia e, claro, pela cultura e, especialmente, a literatura, para debater a essência do familiar até levar a discussão para o seu próprio campo, a psicanálise, dentre outras coisas revelando que "o infamiliar é o familiar-doméstico que sofreu um recalcamento, dele retornando, e que todo infamiliar preenche essa condição"; 

5 - Como característico de outros textos de Freud que dialogam com formas de expressão humana, como a literatura, fato que leva os textos de Freud a outros campos que não a psicanálise, caso dos estudos literários, muitas vezes, em Das Unheimliche, é o conto O Homem da Areia, de E.T.A Hoffmann que fornece os mais relevantes elementos de argumentação. Para Freud o autor "é o inigualável mestre do infamiliar na literatura. Seu romance Os elixires do diabo reúne uma grande quantidade de temas nos quais se pode assinalar o efeito infamiliar da história";

6 - Aliás, numa edição comemorativa é bastante acertada a organização do volume não apenas com o conto de Hoffmann, mas o conjunto de demais textos presentes, dentro da perspectiva dos organizadores de que "numa obra em que a materialidade tanto linguística quanto poética do idioma é abordada de forma tão interconexa, coube a opção por apresentá-la não somente em formato bilíngue, ou seja, na duplicidade das línguas, mas também na duplicidade do texto psicanalítico de Freud acompanhado do texto literário de Hoffmann e alguns pequenos escritos freudianos", como Sobre o sentido antitético das palavras primitivas que "dialogam direta ou indiretamente com este [Das Unheimliche]";

7 -   Dentre os artigos presentes no volume, em Perder-se em algo que parece plano, Ernani Chaves mostra-nos que "de um modo geral, quando se trata das relações entre psicanálise e arte, atribui-se a "O infamiliar" o papel de um texto que instaura uma espécie de cesura" não encontrando-se como em outros textos de Freud certa correlação vida/obra dos autores estudados. Para Chaves, Das Unheimliche  "com isso, menos o reflexo da neurose do autor, as expressões artísticas passariam a ganhar uma certa autonomia e poderiam enfim, ser compreendidas a partir de parâmetros propriamente estéticos";

8 - A questão estética estará presente também no texto de Guilherme Massara Rocha e Gilson Lannini, O infamiliar, mais além do sublime em que os autores dizem que "Das Unheimliche é um pequeno tratado que visa também, por meio das alquimias metapsicológicas, divisar a enigmática amálgama do devir ético do sujeito a partir de suas modalidades de expressão estética". Já em Animismo e indeterminação em Das Unheimliche, Christian Ingo Lenz Dunker mostra-nos que "a experiência da infamiliaridade depende assim de três indeterminações. A primeira estabelece um nexo entre novidade (Neuartigen) e estranheza. A segunda expressa incerteza intelectual ou conflito judicativo. A terceira envolve desorientação, perda do sentido de pertencimento ou de crença na realidade";

9 - O volume então encerra-se com um posfácio de Romero Freitas a O homem da areia. Em Cidadão de dois mundos ele mostra que "o segredo de Hoffman está no contraste. Suas histórias mais conhecidas envolvem sempre uma dimensão dupla: de um lado, a possibilidade fortemente insinuada, mas nunca totalmente confirmada, de uma causalidade mágica; de outro, a efetividade palpável da vida comum, que emerge nas descrições detalhadas, mesmo que caricaturais, dos aspectos concretos da narrativa";

10 - Enfim, O infamiliar é um volume interessantíssimo, não apenas para o campo da psicanálise, como reforçado pelas discussões complementares, para os leitores interessados em discussões e estudos da estética, caso da literatura. É material riquíssimo para estudos, tanto nos campos das artes, da linguística, como, obviamente, na psicanálise.  Somado a isso, claro, o primoroso conto de E.T.A Hoffmann que é literatura que em algum momento da vida teremos de encontrar. Portanto, temos um todo rico e que converge suas reflexões para diferentes perspectivas acerca do infamiliar.



* Em A Hora das Estrela, de Clarice Lispector podemos encontrar uma referência ao termo infamiliar "A claridade batia nas lentes que enviaram sinais agudos. Sem os óculos, seus olhos piscaram claros, quase jovens, infamiliares. Pôs de novo os óculos, tornou-se um senhor de meia-idade e pegou de novo no saco: pesava como se fosse de pedra, pensou".

   

  

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