O Blog Listas Literárias leu Cidade de Deus, de Paulo Lins republicado pelo selo Tusquets do Grupo Planeta; neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro, confira:
1 - Baseado em histórias reais e parte do material utilizado extraído de entrevistas feitas para o projeto "crime e criminalidade nas classes populares", Cidade de Deus de Paulo Lins deveria ser leitura obrigatória no ensino médio brasileiro, em nossas universidades, por sua atroz, bruta e realista perspectiva de uma realidade alarmante do país, numa obra que sem dúvida alguma deve estar entre as mais importantes e relevantes da literatura recente do país, um clássico contemporâneo e amargo de uma nação que existe em paralelo ao Estado, um ambiente em que a existência dá-se ainda pelas regras primitivas da humanidade e abandonada pelo restante de uma sociedade que desconhece o inferno da existência marginal e marginalizada;
2 - Obviamente, é bem possível que quando falemos de Cidade de Deus pensemos imediatamente em sua adaptação para o cinema que rendeu-lhe quatro indicações ao Oscar e até hoje é provavelmente um dos principais títulos da sétima arte no país. A linguagem da violência e da degradação social é retratada no filme com bastante fidelidade, todavia em sua obra original isto está ainda mais tenso e palpável e nos coloca diante duma realidade impensável mas real àqueles que vivem às margens da sociedade onde imperam as leis dos mais fortes, dos brutos, da violência, com isso construindo um retrato de uma sociedade agonizantes cujo um de seus estratos encontra-se abandonado a própria sorte e cuja sobrevivência é mero acaso visto que a morte espreita a cada esquina;
3 - Para tanto, Paulo Lins estrutura sua narrativa em três partes distintas a acompanhar a vida e morte de três bandidos que servem como construção biográfica do espaço geográfico e social de Cidade de Deus, perpassando assim por duas décadas do nascimento da comunidade ao auge dos conflitos que levam terror, medo e morte a suas vielas. Assim, imersos nas vidas de Inferninho, Pardalzinho e Zé Miúdo observamos pela perspectiva do marginal e marginalizado, uma existência frenética, intensa e sem qualquer descanso pois não se é permitido a ninguém viver, tão somente sobreviver aos segundos, minutos e dias, sabendo contudo que a expectativa de viver não é longa;
4 - Há de se dizer contudo que a obra não cai no erro de romantizar ou mesmo de dar contornos de mito ao processo de marginalização, pelo contrário, com olhar sociológico e antropológico podemos observar que o tratamento da narrativa busca apresentar certa fidelidade com a vida real de tal modo que não deixa de trazer claro as motivações sociais da marginalidade e da violência, contudo do mesmo modo não suaviza as crueldades e o horror dos que habitam um espaço cujas regras e condutas ainda se dão por conceitos primitivos, em parte, claro, porque naquele espaço abandonado há-se bem claro o aparte da comunidade com a da sociedade pois no frenesi das existências o evidente é que a distância entre a sociedade e o Estado e Cidade de Deus é gigantesca, distância cada vez mais nítida pela imersão plena no espaço da comunidade como se ela o existisse apartada do resto;
5 - Aliás, o que talvez mais deveria assustar-nos é o quanto a realidade expressa em Cidade de Deus poderia assemelhar-se a uma obra do insólito, com suas mortes em excesso, com suas tragédias inesperadas, mas que contudo, é de fato retrato digno de uma nação que mostra-se incapaz de livrar-se do naturalismo, e que ainda a bestialidade, a ação do meio sobre o indivíduo, e a naturalização de nossas indecências sociais possibilitam a existência desse universo que erroneamente é provável, o vemos como paralelo, mas que constituem o todo de um país que pelo abandono e pelo esquecimento propicia que a brutalidade e a primitividade mantenham-se vivas. Aliás, vale dizer que a leitura de Cidade de Deus não só fala de seu tempo e do tempo de sua narrativa, mas também colabora para nossas perspectivas atuais quando ideais autoritários ganham novo fôlego em parte de nossa população. Muitos dos problemas do nosso presente já estão ali na obra de Paulo Lins, e enquanto continuarmos negligenciando os alertas que a literatura nos faz, parece-me que estamos fadados a repetir certos enganos;
6 - Além disso, não somente como retrato cruel da realidade Cidade de Deus tem seus valores positivos, como obra literária o romance reúne elementos estéticos que o colocam entre os grandes trabalhos de nossa literatura. Se Rubem Fonseca já obtém êxito com sua violência, Lins por sua vez parece reunir ainda mais autoridade que lhe e conferida por uma linguagem autêntica e oral de modo que se Guimarães Rosa trouxe-nos a riqueza dos arcaísmos rurais do sertanejo, Paulo Lins por sua vez nos traz não menos rica produção linguística das camadas mais pobres desse país, isso intercambiando a voz marginal a um narrador onisciente em terceira pessoa erudito mas capaz de alternar com beleza sua voz com a dos moradores de Cidade de Deus;
7 - Deste modo então percorremos duas décadas da comunidade e cujo olhar pela perspectiva do Bandido nos coloca em meio à guerra permanente, a guerra pela sobrevivência, pelo tráfico, pelos assaltados. O que nos fica claro é que o combustível da vida e da existência é totalmente diferente para suas personagens. Todavia, mesmo tratando de uma narrativa a partir do marginal, o romance não deixa de trazer os excluídos para além dos excluído, para a parcela que fica entre a força opressora do Estado e a Força Opressora daqueles que sem põem conta o Estado e suas regras: O trabalhador. O retrato talvez menos explícito do livro nos dá conta de uma sociedade que vive desconectada daquela comunidade, com suas regras e suas bolhas existências que estabelecem um gigantesco abismo de tal modo que deixa claro que o morador da comunidade não pertence a estrutura macro da sociedade. Nisso a bandidagem parece mais consciente que os demais moradores, compreendem o que lhes é negado e optam pela força e pela violência como modo de existência fazendo da comunidade uma espécie de Estado Paralelo com suas leis bastante próprias e com suas estruturas de poder específica tendo que os restante dos moradores equilibrarem-se em meio a essas fragilizadas relações sociais existentes;
8 - A distância entre a sociedade e o Estado, aliás, é bastante evidente. A própria criação da comunidade dá-se pelo expurgo social, e Lins procura da conta das diferentes gentes e espectros sociais que vão sendo jogados à sorte na Cidade de Deus, erguida pelo Estado e abandonada pelo próprio. Isso no livro vai sendo observando pelas poucas vezes quando Cidade de Deus e o resto da sociedade encontram-se, quase sempre pelas notas de jornais ou pela presença de uma polícia tão bandida quanto os próprios bandidos, de modo que ão deixam de ser parte daquela doença social. E como o é geralmente, os problemas de Cidade de Deus só se tornam problemas da sociedade distante quando por ventura os problemas da comunidade possam levar problemas à sociedade distante. Fora isso, a realidade de mortes, medo e terror lhes é indiferente, porque trata-se tão somente do problema deles, dos pobres;
9 - Vale dizer ainda que a constituição da comunidade de forma autônoma do restante da sociedade não faz com que Paulo Lins ignore suas próprias transformações sociais, que em consequência falam também das transformações do retrato da violência no país. Nas duas décadas de narrativa saltamos dos assaltos e da ação um tanto caótica dos criminosos ao florescimento e fortalecimento do tráfico enquanto principal força econômica da criminalidade, transformações que foram implicando no recrudescimento de suas lideranças, numa corrida armamentistas e na consequente corrida armamentista das quadrilhas e no início da organização do crime em facções. Tais movimentos acompanhados também pela prática da corrupção que o faz um outro importante ator da violência de da criminalidade, e que se não levado adiante na narrativa de Lins, veremos suas consequências e resultados em Tropa de Elite, que junto da obra de Lins bem poderiam ser vistos como tratados acerca dos problemas da segurança pública carioca e que, ademais, enfatizam o crime como a cabeça de uma Hidra, que quando cortada tão somente faz nascer outra;
10 - Enfim, poderíamos falar de tantas outras perspectivas e discussões interpretativas desta brilhante narrativa da literatura brasileira, como, por exemplo, o papel da esperança vã na sorte de encontrar a boa, sentimento não só dos marginalizados, mas também dos agentes corruptos da lei. É de certo modo devastador que todos eles, independentemente de qual lado do tiroteio estejam, desejam quase sempre a mesma coisa, viver como qualquer outro habitante do estrato social que importa ao Estado. Sonham com a boa que nunca lhes chega, aspiram um dia abandonar suas vidas medíocres, sejam policiais, bandidos... Ao sonharem e a devanearem pela loteria que não vem no assalto, na batida ao assaltante, nos mostram a acachapante e atroz realidade das esperanças desfeitas, das vidas abandonadas que falam não do fracasso individual de suas personagens, mas como as antigas bandejas com líquido revelador expõe a fotografia de uma sociedade que fracassa constantemente ao abandonar parte de seu corpo ao relento do Estado. Uma negligência que tem muitas responsabilidades quando estas duas pontas de uma nação ainda incompetente enquanto agente do processo civilizatório. Cidade de Deus senta o dedo nos nossos dramas sociais e retratam um país da barbárie, mas uma barbárie patrocinada pelos esquecimentos e abandonos do próprio Estado;
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