10 Considerações sobre A Máquina do Tempo, de H. G. Wells ou assim caminha a humanidade...

O Blog Listas Literárias leu a nova [e muito bonita] edição de A Máquina do Tempo, de H. G. Wells publicado pela editora Suma; neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro, confira:

1 - Clássico da ficção cientifica e imensamente popular, nesta avaliação mais do que falarmos da vitalidade e de sua permanência, se buscará justamente refletir algumas das razões que levam a este trabalho permanecer vivo no tempo, pois para além da aventura, da especulação e mesmo dos artefatos da ciência, não há de deixar-se de observar a narrativa no campo da crítica social asseveradas pelas frequentes preocupações do autor para com o futuro da humanidade enquanto espécie, mas acima de tudo, enquanto construto social. Sob a superfície da aparente simplicidade, A Máquina do Tempo preserva uma grande quantidade de possibilidades interpretativas;

2 -  Embora não seja a primeira narrativa com viajantes temporais, o romance de Wells é provavelmente o primeiro em que a viagem se dá por meio de mecanismo criado pela tecnologia e invenção do homem, enfim, pela ciência. A obra, então é narrada pela voz em primeira pessoa de um dos convivas da casa do Viajante do Tempo, que numa de suas reuniões noturnas fala sobre seu projeto, para o ceticismo de seus convidados, claro. Como comum aos cientistas e suas máquinas, num novo encontro o narrador por meio do discurso indireto então do próprio Viajante no Tempo que de uma fiada só compartilha com novos [e alguns repetidos] convidados a experiência pessoal de sua aventura pelo tempo;

3 - Nessa sua jornada, O Viajante no Tempo percorrerá então milhares de anos no tempo indo então do Século XIX para o declínio final da espécie, no ano 802701 quando o planeta será coabitado pelos hedonistas Eloi e os sinistros e horrendos Morlocks, habitando cada qual espaços distintos, assim como distintas serão suas funções sociais e ainda períodos diferentes e dicotômicos, dia e noite. Aí já temos alguns elementos interessantes da obra, pois a tecnologia estará basicamente centrada na própria máquina do tempo, enquanto todo o resto será fortemente influenciado por preocupações sociais, tanto que o autor abdica de observar - narrar - o auge da sociedade humana trazendo disto pequenas nesgas de informações percebidas durante a sua viagem na máquina. Creio que abordarei isto um pouco mais, antes...

4 - Uma das coisas bacanas destas reedições de obras clássicas pelo Grupo Companhia das Letras é a incorporação de materiais a respeito das obras, no caso desta reedição, um prefácio de Braulio Tavares, e um prefácio do próprio Wells para a edição de 1931 em que comenta a longevidade [mal sabia ele...] de A Máquina do Tempo e elementos do processo de escrita do romances. Pois bem, no prefácio desta edição Braulio Tavares comenta então que "com A Máquina do Tempo, a literatura utópica futurista começava a transferir do âmbito dos diálogos filosóficos para os romances de aventura". Todavia, encarar o romance na perspectiva utópica talvez seja um tanto arriscado, até porque os momentos em que Wells decide narrar a jornada são bastante significativos, incluindo as reflexões ou pelo menos teorizações do Viajante no Tempo sobre o que levara ao planeta dividir-se em Eloi e Morlocks. Além disso, o próprio Wells no interior da narrativa procura distanciar-se das narrativas utópicas, em parte buscando contornos de realidade para os relatos do Viajante no Tempo. "Eu não dispunha de um providencial cicerone, como ocorre em geral nos romances de utopia" diz o viajante, entretanto não é a única vez em que o Viajante no Tempo procura tal afastamento: "Tenho lido visões de utopias e relatos em tempos futuros, e em todos eles proliferam-se  detalhes sobre construções, costumes sociais e assim por diante. Embora sejam muito fáceis de obter quando o mundo inteiro está contido na imaginação do escritor, tais detalhes são totalmente inacessíveis a um viajante de fato..." Penso eu, a fala do Viajante busca justamente contrapor realidade com a utopia dando a entender o quão subjetiva ela se torna perante a experiência concreta. Esses trechos acabam, se somados ao futuro catastrófico narrado pela aventura, trazendo peguntas e dúvidas quanto a utopia enquanto possibilidade, o que, parece-me justamente dialogar com sua visão oposta, dizendo com isso que não seria exagero pensarmos no romance com os pés dentro um tanto a mais da distopia, utopia negativa ou anti-utopia que propriamente algo utópico. É um bom debate, entretanto, penso que a próxima observação traga mais elementos a esta concepção do romance...

5 - O prefácio de Wells a uma edição de 1931 revela questões muito interessantes sobre as relações ente obra e autor, e quanto uma e outro podem assumir caminhos inesperados. No artigo o autor fala do processo de escrita do romance, basicamente em duas partes, a criação da máquina, inspirada em leituras em publicações de 1891 e a segunda, surgida da necessidade de publicar algo para consegui dinheiro. Sobre essa distinção entre a primeira parte mais elaborada, e curioso observar o que ele diz "assim, minhas teorias expostas no início da narrativa se transformam, paradoxalmente, num romance imaginativo marcado pelas características do período em que foi escrito, em que predominava um Stevenson ou um Kipling em princípio de carreira". Todavia o todo do romance afasta-se das referências citadas e mesmo quando no ritmo de aventura, a narrativa de Wells apresenta-nos duas questões com premissas nas ciências, astronômicas e sociais;

6 - Tais questões prementes no pensamento do autor são tratadas no prefácio de 31 e tornam ainda mais aparente duas questões centrais no aspecto sombrio de A Máquina do Tempo. A questão da astronomia e a posição do planeta no Cosmos [e perante ele] são evidentes ao revelar qual período do futuro Wells gostaria de observar, tanto que após sua exótica e inóspita aventura em 802701, o Viajante no Tempo avança ainda mais até sua chegada não só no declínio da espécie, mas do próprio planeta sendo sua ida mais distante ao futuro quando já dominante uma astronomia completamente diferente de como a conhecemos. Isso converge para o que Wells fala das discussões de seu tempo "os geólogos e astrônomos daquela época [Vejamos que trinta e seis anos tinham seus efeitos] nos diziam mentiras terríveis sobre o inevitável resfriamento do mundo - bem como dos humanos e de todos os seres vivos. Não parecia haver escapatória" sendo que Wells acaba justamente retratando tal desfecho para o tempo;

7 - Somada a este problema astrofísico, há ainda a questão social, que quer dizer não só do próprio contexto social e histórico a que o autor estava inserido, mas também a suas leituras como diz ele de si mesmo "A ideia de uma diferenciação social dos seres humanos em Eloi e Morlocks parece-lhe agora pouco mais que grosseira. Uma das grandes influências em sua adolescência foi a leitura de Swift, e o pessimismo ingênuo de seu retrato do futuro humano". Eis neste pequeno trecho portas para uma série de debates, discussões e reflexões que não se cabem neste post breve e simples, todavia mostra o contraste entre autor e obra, sem falar sobre a ação do tempo, sendo o autor sempre mais suscetível ao relógio. Na voz do Wells autor temos então alguém mais otimista, trinta e seis anos após a publicação do romance, que aqui é reconhecido pelo próprio, conter maior pessimismo. Wells talvez neste século não achasse mais tão grosseira tal divisão, afinal, há em grandes partes do mundo lugares em que dividir castas sociais entre Elois e Morlocks já não seria tanto exagero... Mas enfim, o debate aqui e justamente demonstrar que para além do aspecto astronômico, as ciências sociais desempenham centralidade no elemento filosófico da aventura, de modo que a visão pessimista deste futuro dicotômico socialmente pode ser observador para além da própria máquina do viajante;

8 - Nesse sentido, das discussões sociais, vale dizer que temos muitos estudos que apontam para a distopia como elemento de crítica social. Em parte porque tais acerca destas narrativas do futuro do presente mais do que nos apresentar projeções ou profecias futuras, tratam sim do próprio presente a que estão inseridas. O excerto do prefácio de Wells aponta para isso, mas acima de tudo, são as marcas da própria internalidade do texto que diminuem as distâncias temporais, que no caso do romance, buscam revelar que aquele futuro sombrio e estranho a que chega o viajante tem bases em seu próprio presente. "Mesmo hoje o homem é menos exigente e seletivo com sua alimentação..."por outro lado, a tendência de os ricos levarem uma vida cada vez mais exclusivista (...) No arredores de Londres, por exemplo, talvez mais da metade das mais belas zonas campestres rejeite intrusos..." estes trechos demonstram o quanto o Viajante ao estudar a sociedade futura, a encontra como consequência de suas bases passadas, postura que ele assume enfaticamente ao "primeiro, tomando como base os problemas de nossa própria época..." o que amplia a sensação de alerta comumente presente às distopias;

9 - Mas para não ficarmos neste post focados tão somente num viés [Antonio Candido já nos falava da participação da ideologia do crítico - o que não sou -nas suas avaliações, talvez seja o caso aqui (risos)], quando falei da diversidade de portas para o debate crítico sobre a obra é que provavelmente poderíamos discorrer com muito mais extensão de outros elementos, alguns até polêmicos como as possíveis marcas de pedofilia presentes na relação entre O Viajante no Tempo e a Eloi Weena, sendo todos eles descritos com aparências infantis [Aliás, Admirável Mundo Novo, de Huxley bebe um bocado nos Eloi]. Seria uma viés que certamente daria pano pra manga;

10 - Enfim, temo aqui mais afastar os leitores do que vender a aventura, visto que centralizamos esta avaliação na perspectiva social e política de modo que quase afirma-se que aqui a aventura faz o papel da teia de aranha, iludindo seu leitor para o entretenimento mas guardando sob a superfície de suas águas questões profundas e complexas. Acho que talvez seja isso mesmo, A Máquina do Tempo é lógico uma aventura basilar dos romances de aventura e da ficção cientifica, flerta com diferentes gêneros ao mesmo tempo que estabelece novas bases para o seu próprio. Todavia, a este leitor, ao final fica a percepção da distopia presente, na melancolia causada com o insucesso humano, e nesta perspectiva distópica talvez nenhum trecho seja mais elucidativo que este quando o Viajante desolado diz "fiquei abatido ao pensar em como o sonho do intelecto humano havia sido breve. Tinha cometido suicídio. Tinha se aplicado com toda energia à busca de conforto e do lazer, à busca de uma sociedade equilibrada cujas palavras de ordem eram segurança e estabilidade, e atingira o objetivo - daquele modo. Em algum momento a vida e a propriedade deviam ter alcançado um estado de absoluta segurança. Os ricos tinham certeza de sua riqueza e seu conforto, os operários tinham a mesma certeza quanto a sua vida e seu trabalho. Sem dúvida, naquela sociedade perfeita deixara de haver problemas como o desemprego, e nenhuma questão social deixava de ser resolvida..." Eis aqui justamente a gênese da distopia, o momento quando passamos a encarar a aparente utopia com desconfiança e abatimento, algo ainda mais latente nas obras de Huxley e Zamiatin algumas décadas depois. Nós e Admirável Mundo Novo tratam da estabilidade e da ordem social, mas suas bases sem dúvida tem parte de nascimento nesta viagem no tempo. No caso da obra de Wells, para seu Viajante tal estabilidade surge desencantadamente como problema, e até podemos questionar a afirmação do Viajante no Tempo de que "os únicos animais que demonstram inteligência são aqueles que precisaram enfrentar grandes adversidades" e toda polêmica e aceitações que dela podem - e provavelmente - surgem, mas este é só mais um reforço de o quanto ainda temos para falar dessa narrativa.




          

Postar um comentário

Postagem Anterior Próxima Postagem