O Listas Literárias leu O Tempo Desconjuntado, de Philip K. Dick, publicado pela editora Suma; neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro, confira:
1 - Surpreendente, instigante e perturbador, O Tempo Desconjuntado é mais uma das grandes narrativas de Philip K. Dick e que entra de sola numa questão presente em grande parte da obra o autor, afinal, o que é a realidade? É uma destas leituras indispensáveis a leitores que procurem por complexidades e incertezas, e neste post, espero, pelo menos, entregar o menos possível desta grande narrativa;
2 - Publicado em 1959, a obra narra a estranha experiência de Ragle Gumm, ex-combatente que vive com a família e passa os dias a participar de um estranho concurso de jornal. Todavia, essa aparente simplicidade vai sendo desfeita pelo ambiente paranoico que vai surgindo a partir das desconfianças de Gumm e pela própria atmosfera do ambiente criado, de tal forma que mesmo quando não há por parte dos personagens a paranoia, esta cabe ao leitor, que desde o princípio construirá suas próprias desconfianças, e mesmo, ficará atento a determinadas estranhezas, mesmo quando estas soem mais reais do que o restante;
3 - Aliás, uma pista inicial acerca da narrativa dá-se pelas próprias ações e métodos de Ragle, que insistentemente aborda a questão do concurso do jornal a algo relacionados a padrões ou de espaço ou de tempo, mote que instigará suas desconfianças sobre todo o resto e que servirá como corda a descerrar as cortinas do que é ou não real. Além disso, como o próprio título indica, o tempo é algo muito mais complexo do que as simples desconfianças do protagonista, visto que estará intimamente ligado e condicionado à própria estrutura estética da narrativa, o que aliás, a colocará no campo da ficção científica, bem como debaterá questões essenciais e caras ao gênero;
4 - Assim, toda a atmosfera daquele cidade do final dos anos 50 e anos 60 produzirá o efeito de estranhamento, seja nos leitores, seja em seus habitantes. É um ambiente de constante medo da guerra, dos bombardeios, enfim, penetra os medos de grande parte da produção à época, especialmente a bomba H. de modo que é como se fosse uma narrativa contemporânea à própria publicação e assumidamente uma possibilidade de leitura realista;
5 - Contudo, o extremo talento de Dick talvez fique mais nítido aqui do que por exemplo, em Blade Runner. (Essa é uma explicação possível em textos acadêmicos, sem as restrições de uma resenha, já que não pretendo entregar tudo). É que ao ser revelada as razões e os motivos da paranoia presente, em parte justificada pelas estranhezas do ambiente, teremos a clareza de quanto o autor pode olhar à frente e como estabelece na narrativa um permanente jogo de falsos e positivos que nos deixam mais e mais desconfiados;
6 - Desse modo, vale dizer que o livro, embora numa atmosfera de guerra e medo, não trata-se de uma obra de ação, são na verdade mergulhos em diferentes camadas psicológicas numa rede complexa de desconfianças e descobertas. É como se Ragle Gumm fosse um predecessor de Neo a descobrir as falhas na matrix, pois é mais ou menos que lhe acontece, a perceber sempre desencontros e inconsistências num ambiente que parece controlado e irreal;
7 - Mas se a paranoia de Gumm, ao final é respondida e justificada de forma arrebatadora e esclarecedora, ela entretanto não desfaz a semente da dúvida plantada, as estranhas sensações partilhadas entre leitores e protagonistas, como por exemplo, a impressão da repetição de experiências vividas, os déjà vous, as pequenas falhas cotidianas como as coincidências, que não raro lançam dúvidas acerca da realidade, algo que tem em Dick, importante porta-voz;
8 - Além disso, vale ainda dizer do caráter político, reflexivo e crítico da narrativa, que surgirá em determinados momentos, especialmente quando as personagens moverem-se no sentido de tentar responder suas dúvidas. Quando a política vem à tona, traz junto a companhia dos autoritarismos e das tiranias, vide o comportamento kafkaniano do antagonismo político a cercar e aprisionar Gumm como vemos no diálogo lúcido dele "tudo pode servir de desculpa para que o mecanismo se ponha em movimento e todas as forças comecem a convergir sobre mim";
9 - Ademais, há ainda no campo do combate político e expresso na estrutura narrativa a dialética conflitante entre ciência e fé, ao mesmo tempo que confrontamentos iluministas, protestantes e católicos estarão presentes na gênese da narrativa e que como aponta Adam Roberts acaba marcando bastante a ficção científica. Tudo isso resulta numa abordagem com diferentes camadas tão complexas ou intrincadas quanto as noções de espaço e tempo, com suas variáveis e seus dramas;
10 - Enfim, O Tempo Desconjuntado é uma destas narrativas que em algum momento teremos de ler, e Philip K. Dick, como nenhum outro é capaz de tratar de angústias humanas que flertam os limites da insanidade e da maestria percebendo como poucos o caráter estranho do nosso universo e das coisas pelas quais ainda procuramos respostas. Se internamente a trama percorre os trechos da distopia e da utopia, externamente nos coloca diante uma série de reflexões que não se fecham com o desfecho claro e resoluto da narrativa, pois como bem compreende Ragle Gumm tais questões intimamente e intrinsecamente humana permanecem complexas e pouco afeitas a conclusões simples como percebemos na reflexão "o verdadeiro motivo estava fora do espaço consciente de suas mentes. Ele mesmo não saberia traduzir em palavras esse anseio, mesmo sendo um dos que o experimentavam com plenitude. Ninguém poderia. Era um instinto, o mais primitivo dos impulsos..."
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