O Blog Listas Literárias leu O Poder, de Naomi Alderman, publicado pela editora Planeta; neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro, confira:
1 - Provocativo, eletrizante - literalmente - e polêmico, O Poder reúne os elementos primários que deram origem às narrativas distópicas e avança para além das brandas distopias deste século, construindo um cenário de desesperança e ceticismo tão impactante quanto os clássicos 1984 e O Conto da Aia numa obra que os leitores correm o risco de interpretá-la da forma mais cômoda, como por exemplo, vê-la apenas numa perspectiva feminista, porque ao cabo, o romance é bem mais duro e amplo que isso, e nos atira a um futuro distópico duplo em que a descrença vai para além do gênero, mas atinge toda a humanidade;
2 - Em síntese, a obra nos leva a um futuro longínquo, cinco mil anos após "o cataclismo", e apresenta-nos uma sociedade em espelho invertido - mas talvez não tanto - em que as mulheres controlam o mundo após a tomada de poder com a descoberta de uma poderosa força - a trama - que permitem às mulheres que não só eletrocutem, mas possam ordenar ou comandar outras pessoas por meio dessa energia descoberta. Todavia, essa inversão de controle e poder não significa propriamente melhorias no mundo, tampouco a vitória do gênero feminino, questão que trato a seguir. Tais questões desenvolvem-se então numa estrutura estética particular fazendo com que o livro habite as nebulosas fronteiras dos gêneros literários, estando tanto para o romance, como a ficção cientifica ou a fantasia, pois aqui as linhas e os limites são bastante tênues;
3 - Na verdade, necessitamos antes de mais nada observar a estrutura interna da narrativa. A obra divide-se em dois tempos distintos, criando ainda a figura do romance dentro do romance. Assim, temos a apresentação inicial a partir da troca de mensagens entre um autor, Neil Adam Armon e sua editora, Naomi, habitantes dessa "nova" sociedade daqui uns cinco mil anos, em que ele apresenta o manuscrito de seu O Poder - Um Romance Histórico, obra em que busca reconstruir então os anos que antecederam "o cataclismo" a partir de uma ficção elaborada com parcos elementos históricos de quando a sociedade controlada por homens caiu, para então a chegada do domínio das mulheres. Assim, a narrativa interna à narrativa narra-nos um futuro próximo quando esta guerra dos sexos explode de vez, fato que amplia a sensação de duplicidade, ou ampliação da distopia. No fim, voltando novamente ao futuro longínquo com sarcasmo e ironia, a troca de correspondências entre Naomi e Neil trata tanto do manuscrito quanto dessa "nova" sociedade, e tudo isso constrói um todo desolador;
4 - A partir dessa observação da estrutura estética da obra, podemos então partir para discussões e reflexões acerca da obra e seu conteúdo, o que, não havendo cuidado ou aprofundamento nas interpretações pode-nos levar a observações ingênuas - quiçá errôneas - sobre o livro, entre elas, a de observar a narrativa como mera denúncia do patriarcado, da podridão moral dos homens e por aí vai, assim como se pode vê-lo apenas como manifesto de um feminismo radical, o que pela inversão de sociedade que a autora nos apresenta, deveria levar nossas interpretações para muito além disso;
5 - E o que nos obriga ir além é justamente essa nova sociedade construída por Alderman, tão somente um reflexo do mundo legado pelos homens, pois a tomada do controle não só político, mas das narrativas mitológica e teológicas não nos levam a um futuro utópico, mas apenas substitui a tirania de um gênero pelo outro. Penso que essa inversão e justamente o que amplia ou o que tornar essa distopia potencializada. Temos a sensação ou talvez o desejo ingênuo que o avanço das conquistas femininas poderiam levar-nos a um futuro melhor, utópico. Temos isso nas lendas que caracterizam um Mulher Maravilha, e vemos isso, por exemplo, no recente Belas Adormecidas de Stephen e Owen King em que se comparam dois mundos paralelos, o dos homens, caótico, bruto e violento, e uma utópica dimensão em que as mulheres que na terra hibernam, reconstroem uma sociedade a partir doutros parâmetros. Tal esperança num futuro governado por mulheres, para além da cultura, permeia mesmo nossas expectativas sociais, visto que as observamos, por exemplo como mais confiáveis, éticas e humanas quando na política. Tais perspectivas são arrombadas na narrativa de Alderman;
6 - E isso só mostra o quanto de armadilhas interpretativas podemos enfrentar na leitura do romance, já que uma "alma" má intencionada pode observá-la como uma declaração de inaptidão de uma sociedade controlada pelo gênero feminino (aliás, essa não deixa de ser uma dicotomia talvez quase tão ultrapassada quanto a dicotomia capitalismo/comunismo, num mundo que hoje já andou tanto, mas tanto, que pensar numa guerra dicotômica de dois gêneros não deixa de ser autoritária em em tempos que já não se pode resumir gênero a tão somente duas perspectivas) ou numa hipótese não menos desagradável, em ver na obra mais uma justificativa de resistência machista jogando-se numa luta contra a possibilidade de perder seus poderes;
7 - Mas não penso que a narrativa seja isso (embora saiba que não faltarão interpretações equivocadas), e com todos os enganos que possam haver na minha interpretação, vejo o romance de fato como uma distopia potencializada, em parte provocada pelos tempos presentes em que nos vemos tão perto de cometer os mesmos erros das primeiras décadas do Século XX. Esse efeito potencializado, além de todas as inversões elaboradas por pessimismo, pode ser vista no dialogo entre a "voz" misteriosas, provavelmente a consciência de Allie/Mãe Eva, a versão feminina de um Jesus Salvador: "A voz diz: nunca existiu uma opção certa, meu docinho de coco. A Própria ideia de que existiu duas coisas e de que você tem de escolher uma é o problema. Allie diz: então o que faço? A voz diz: escute, deixa eu te dar a real: meu otimismo com os humanos já não é o mesmo de antes. Lamento que as coisas não possam mais ser simples para você. Allie diz: está escurecendo. A Voz diz: claro que está." Logicamente, embora dê alguma ideia de meu argumento, o trecho não dá conta da complexidade dessa própria voz, que dirá de todo o conjunto, entretanto, a ampliação ou potencialização da desesperança se verá ainda no sucumbir dos poucos personagens lúcidos e coerentes, que se tornam cada vez mais impotentes diante um mundo em que quase todos clamam pelo caos;
8 - Além disso, há ainda uma outra perspectiva interessante de leitura, nesse caso para leitores homens que é a alteridade promovida pela autora em sua narrativa. Essa inversão realizada nos apresenta um mundo controlado por mulheres que agem de forma reprográfica ao que os homens vem agindo pelos últimos cinco mil anos. Nesse sentido, a narrativa permite a um leitor homem a vivenciar e sentir sua própria tirania secular passando por tudo aquilo que as mulheres vem passando ao longo de nossa história, o que seria uma coisa interessante, mas desconfio que o tipo de homem a que tal mensagem seja dirigida e a quem essa alteridade seja uma necessidade talvez não estejam entre os possíveis leitores dessa narrativa;
9 - Como vimos, a leitura é uma dessas, que embora aparente simplicidade em sua superfície, é um grande e poderoso soco, especialmente quando nos permitimos perceber a pouca mudança estabelecida nos ciclos revelados pelo romance e na impotência do pensamento razoável quando o medo e o caos simplesmente jogam a todos em sombras e trevas em que a razão é substituída pela força, pelo poder, este sim, constituído nas piores acepções que temos sobre o poder;
10 - Enfim, O Poder é uma distopia digna a ser chamada de distopia. Não há brandura aqui, e em sua narrativa, Alderman nos coloca diante um universo violento e intolerante que menos do que olhar para o futuro, trata de questões específicas de nosso presente num retrato perturbador e acachapante do quanto continuamos incapazes de avançar efetivamente rumo a um futuro melhor.
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Resenhas