10 Considerações sobre Coragem, de Rose McGowan, ou sobre enfrentar problemas históricos

O Blog Listas Literárias leu Coragem, de Rose McGowan publicado pela Harper Collins; neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro, confira:

1 - Coragem é a autobiografia de Rose McGowan, uma das vozes feministas mais fortes da atualidade, que ao acusar o produtor de Hollywood Harvey Weinstein por suas práticas de assédio sexual, desencadeou toda uma gigantesca luta das mulheres na maior indústria do entretenimento; no livro, além de sua vida em Hollywood, de forma intensa, em muitos momentos até mesmo verborrágica, a atriz fala de sua história e desnuda um mundo hostil às mulheres, meninas, crianças...

2 - Na obra, a autora narra de sua infância até o momento de percepção e compreensão do mundo a qual está inserida, especialmente toda a estrutura machista e misógina que a cerca, que embora em seu livro seja focada na indústria de Hollywood, suas experiências anteriores a isso, bem como uma observação básica da nossa sociedade, deixa bem claro quem está no controle, e, aliás, usa de todos os meios para manter esse domínio: um mundo de homens e inimigos das mulheres;

3 - Por isso a narrativa de McGowan é marcada por uma contundência revolucionária - que às vezes flerta com o reacionarismo -, palavras escritas com o fígado, duras, fortes, mas necessárias diante da luta que se dispõe a enfrentar, pois enfrentar o machismo é de certa forma enfrentar séculos de estruturas sociais firmadas e mantidas das quais se é difícil de escapar, porque, como a indústria do cinema, como denuncia a voz de McGowan tudo está centrado e voltado aos desejos e vontades dos homens;

4 - Aliás, Rose de fato revela coragem em sua postura, pois enfrentar interesses gigantescos é tarefa árdua, e o interessante de suas denúncias é o diálogo que podem ser construídos, como os alertas já feitos por Adorno sobre o poder do cinema. Rose confirma e expõe os reais interesses contidos mesmo nos mais simplórios ou debochados filmes, pois eles assim como toda a indústria cultural determinam e influenciam o comportamento das massas, cujos objetivos denunciados pela atriz, vocês verão, não tem nada de nobre;

5 - É portanto uma reação importante à séculos de opressão, e o que McGowan se dispõe a fazer é necessário que frutifique para que sua voz não seja emudecida pelo tempo, porque mesmo que possamos encontrar problemas ou nos incomodar com sua argumentação combativa, nada apaga aquilo que ela denúncia ou atira na cara da sociedade, sendo que, você, por mais que não queira concordar com ela, certamente - e infelizmente - poderá transpor para experiências reconhecíveis ou próximas acontecimentos muito semelhantes a que ela foi vítima, pois é isso que a sociedade tem feito com as mulheres, vitimiza-as sexualizando seus corpos, pagando-lhes salários desiguais, construindo uma sociedade em que a escolha da mulher nunca é uma escolha, abusos, desconsideração, etc...

6 - E talvez o maior valor no desabafo e grito contra a opressão que a atriz faz no livro e fora dele é deixar abaixo das camadas superficiais daquilo que relata a grande dificuldade de escaparmos (homens e mulheres) dessa teia armada há muito, e que hoje conta ainda com toda uma indústria de entretenimento que reproduz e mantém tais desigualdades, e isso vemos não só no cinema, mas nos quadrinhos, nos games, na literatura... Rose mete o dedo numa ferida pútrida;

7 - O poder do peso de séculos estruturados sob determinados conceitos, aliás, pode ser visto nas próprias contradições da argumentação da autora, cuja postura se volta com veemência contra a objetificação do corpo, a criação de padrões estéticos de interesse das indústrias e os quais são reproduzidos e inculcados pelo entretenimento, mas que contudo se prende ao conceito de belo, no caso sua antítese, a feiura, de modo a caracterizar Harvey Weinstein (que ela não nomeia no livro) meio que como ligando a seus aspectos físicos o asco produzido por suas criminosas atitudes. Aproximar ao feio ou ao estranho, aliás, é comum nos casos de denúncias e abusos que ela coloca no livro, o que também não deixa de ser problemático, e que de certa forma acaba não rompendo por completo com as práticas a que ela tanto critica e denuncia;

8 - No mesmo sentido, ao falar das "seitas" da vida, até porque ela passou a infância numa seita, e abordar o que Adorno já falava sobre o "poder cego dos coletivos", a atriz mostra como as ações de grupos, suas medidas auto-protetivas, bem como a intolerância dentro deles a figuras divergentes, estabelecem uma guerra danosa e de alto poder alienante, sendo ela própria exemplo do quanto tempo levara para perceber a realidade cruel e podre por trás da máscara utópica do sucesso de Hollywood, a autora ao final, parece ao leitor, ao final não perceber que ela não está totalmente libertada das seitas, apenas agora lidera uma nova;

9 - Mas enfim, Coragem não é um livro para saber dos babados de Hollywood - se você o procurar por este motivo, está fazendo errado - mas sim uma obra política que escancara não só um grave problema do cinema, mas do mundo como um todo, o qual precisa de vozes assim, que mesmo que possam parecer violentas, reacionárias, inflamáveis, são absolutamente condizentes com vozes de quem por muito tempo vem sofrendo dos mais diferentes tipos de violência que mantém sob o tapete um bocado de merda que nós homens fazemos;

10 - Enfim, esta é uma leitura de um homem, passível de muitas falhas e problemas. Mesmo quando nós, homens pensamos ser liberais, feministas (me incluo nesses), precisamos ter contudo a consciência de estarmos bem longe da capacidade de compreendermos com exatidão vozes como a de McGowan. Como a própria atriz aponta em trechos de seu livro, tanto homens e mulheres, mesmo quando progressistas mantém atitudes machistas e misóginas mesmo sem perceber. Parte disso aponta para talvez um dos principais pontos da obra, o dedo apontado para a indústria cultural, hoje, cada vez mais do entretenimento. Nesse sentido o livro é um convite para que se olhe com atenção em tudo o que consumimos como arte e cultura. Vejamos que mundo estamos representando ali, que mundo desejaremos representar. Coragem é obra, que mesmo em suas contradições, com virulência e pungência fala de uma luta que chegou para ficar.



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