10 Considerações sobre Capão Pecado, de Ferréz ou bem-vindos ao inferno

O Blog Listas Literárias leu Capão Pecado, de Ferréz publicado pela editora Tusquets do Grupo Editorial Planeta 16 anos após seu lançamento; neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro, confira:

1 - Capão Pecado é uma destas obras de difícil conceituação ou classificação porque é bastante única e propõe reflexões acerca do ser literário ao trazer para os livros um espaço excluído ainda que precisemos observá-lo também como literatura ou pretensa literatura, o que de todo modo coloca o leitor num terreno minado visto que tido como uma obra expoente da literatura marginal carrega por outro lado elementos de uma estrutura narrativa comum aos romances do status quo visto que não se deixa de ver aqui certos enredos shakespearianos;

 2 - No romance, como em outras obras da literatura brasileira é possível imaginar o ambiente como personagem, no caso a comunidade do Capão Redondo, por onde circula uma gama de personagens imersos num espaço até então sem voz e que dá visibilidade a um lugar sem esperança e imerso numa violência naturalizada e distante da sociedade criando uma gigantesca percepção de não pertencimento;

3 - Assim, numa narrativa em terceira pessoa e que beira à oralidade numa identidade linguística própria que reforça o distanciamento entre a elite social do país e a base mais frágil do estrato social o leitor acompanha especialmente Rael, mas também outros personagens da comunidade numa movimentação intensa em meio a uma desestruturação impactante em que desesperança e sofrimento são palavras que saltam de suas páginas;

4 - Contudo, ainda que com essa identidade específica, não deixa de ser curioso ou um convite à reflexão o fato de no interior da obra termos um elemento narrativo característico ao romances tradicionais em que o conflito amoroso surge de forma importante, inclusive conduzindo a desfechos que exigem avaliações mais profundas no romance como é o caso do que vem a acontecer com Rael;

5 - Entretanto, mesmo que Rael seja quase um protagonista da obra, ainda assim não se sobrepõe ao próprio espaço, aliás, este segundo é que perdura e que se impõe sobre tudo e todos de tal forma que adentra a pele e a alma de seus viventes ao apresentar como se fosse "crônicas de um inferno" um mundo distante de boa parte dos brasileiros em que a desumanização ocorre de diferentes formas da subjugação ao crime ou a entrega total ao álcool ou às drogas;

6 - Temos portanto uma narrativa a partir dos próprios excluídos, mas a partir daí temos também uma outra série de reflexões a fazer, inclusive de como nesse espaço de oprimidos sem ampliam também as diferentes formas de expressões visto que no romance neste espaço tão pressionado e excluído ele próprio repercute e repete as opressões de tal forma que a comunidade rejeita o diferente, como é o caso das atitudes para com aqueles que tentam ainda sonhar com um mundo melhor, seja pelo estudo ou pelo trabalho, e com isso logo passam a ser excluído dentre os seus agigantando o não pertencimento do indivíduo à sociedade. Neste sentido a violência escamoteada é ainda mais impactante porque ao ocorrer tais distinções e ao passo que a própria narrativa acaba aceitando isso ela de certa forma reproduz um olhar dominante de que é culpa do oprimido não libertar-se;

7 - Além disso, o livro escancara uma série de preconceitos, e nisso é essencial olharmos para apresentação das mulheres na obra e no espaço, onde ocupam assim como no espaço a ser criticado, as elites, ocupando as mulheres do livro também um papel de submissão e sofrimento reproduzindo a cultural patriarcal e machista o que torna-se ainda mais violento num espaço oprimido;

8 - Mas certamente o maior impacto e talvez o ponto de maior reflexão e estudos que temos que nos dedicar ao romance é a observação da naturalização da violência tomada por um determinismo social muito forte que nos remete ao realismo naturalista da literatura clássica mas que aqui mais do que o determinismo impacta justamente pelo escancarar da desesperança que joga tudo num poço de desespero em que não se apresentam soluções, apenas uma sobrevivência animalizada e violenta num ambiente que não poupa ninguém, nem mesmo àqueles que um dia ousaram sonhar;

9 - Por tudo isso, este não é um livro fácil de se analisar ou criticar porque ao dar voz e vida a um espaço geralmente excluído da sociedade ao mesmo tempo nos grita que justamente neste local de opressão e esquecimento se reproduzem o que desejam as elites de tal forma que a própria obra apresenta dificuldades em apresentar uma alternativa, em olhar de outra forma o próprio espaço, mas acima de tudo trata da incapacidade de fugir de algo já programado pelas instituições dominantes de tal forma que podemos pensar na narrativa como desestabilizadora ao mesmo tempo que em seu cerne mantenha atitudes conservadoras e arcaicas numa impossibilidade de resistência;

10 - Enfim, Capão Pecado mais do que crônicas de uma comunidade pobre e oprimida trata da desumanização completa e da desesperança numa obra que demanda para além de sua violência e demasiada naturalização estudos mais profundos e críticos que não atenham-se tão somente a sua voz marginal e oral mas que também compreendam sua complexidade e acima de tudo discutam-na como literatura e como contradição visto que há neste livro uma série de elementos a serem refletidos calmamente e com extremo cuidado e atenção.


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