10 Perguntas inéditas para Sheyla Smanioto

O Blog Listas Literárias entrevistou a escritora Sheyla Smanioto, autora de Desesterro, vencedor do Prêmio Sesc de Literatura de 2015. Nesse bate-papo uma conversa muito franca e de muita compreensão política sobre sociedade e literatura, confira:  

1 - Desesterro é sua estreia na literatura, e logo vencendo um importante prêmio como o Sesc. Entretanto sua biografia já revela muitas premiações, no drama, nos contos... Enfim, você se prepara especificamente para prêmios ou tem sido algo natural como porta de entrada para o universo literário?

Primeiro, eu escrevo. E como quero que leiam o que eu escrevo, os prêmios surgem como uma estratégia. Poucos lugares são mais distantes de uma cidade do que sua periferia, estou em São Paulo mas demorei vinte e quatro anos para chegar ao centro. Para tomar coragem de levar meu texto para o Marcelino Freire, para achar que o que eu vinha dizer lá de longe valia a pena ser dito. Os prêmios apontam para o nosso texto, não para nós, e deixam a gente mais seguro quando vai preencher a profissão nos formulários. Para uns pode não ser nada, para mim o Prêmio Sesc – especialmente – foi questão de empoderamento.

2 - Aliás, aproveitando o tema de premiações literárias, vemos que autores produtores de uma literatura mais compromissada dedicam-se a prêmios e concursos, enquanto autores de um caráter, digamos pop ou comercial surgem a partir de plataformas on-line como Wattpad. Nesse sentido, como você vê estas duas maneiras distintas de se entrar no universo editorial?

Cada livro faz o seu caminho. Eu comecei escrevendo fanfics de Harry Potter, veja só. Aos poucos já não era o suficiente, fui criando meus próprios universos, entrei numa obsessão com dramaturgia... me encontrei no Desesterro. O Wattpad não serve para mim, que começo a escrever sem saber onde vou chegar, depois jogo tudo fora para estruturar, volto, pesquiso, começo a escrever pelo fim, enfim. O mais importante, creio, é compreender o próprio projeto para ser capaz de encontrar o lugar dele. O Desesterro seria um fracasso no Wattpad, estou certa disso.

3 - Saindo um pouco da questão mais ampla da literatura, sua estreia, Desesterro, vencedor do Prêmio Sesc é uma obra interessante no campo dos estudos literários. Percebemos (ao menos eu) elementos de diferentes escolas literárias, do modernismo com seus neologismos e fluência oral, ao naturalismo de suas descrições cruas,e, claro, uma temática muito presente no romance de 30. Enfim, você de fato utilizou tais questões de forma intencional ou o romance se fez assim?

Não é esse o meu foco, confesso. Meus estudos no campo da literatura nunca foram para esse lado. A parte consciente das minhas escolhas estéticas está na elaboração da linguagem e na dramaturgia da trama, o resto simplesmente acontece (gosto de dizer: é invocado). Minhas leituras me carregam nos ombros, é verdade, mas veja: de onde vejo, o único neologismo do Desesterro é o título. Você por um lado pode dizer que o Desesterro namora com o naturalismo, mas há quem diga que seu laço mais forte é com o gênero fantástico, que mora lá do outro lado. Há referências diretas no texto a autores como Kafka, Cortázar, Rulfo e João Cabral de Melo Neto. Eu tenho aqui um sentimento íntimo de que o Desesterro é um livro de terror bem brasileiro, parecido com aqueles causos assombrosos que a gente ouve Brasil adentro. Não é o máximo? Ler é levar nossos próprios afetos para passear.

4 - Aliás, na avaliação de seu livro aqui no blog cheguei a lembrar, por exemplo, O Quinze, de Rachel de Queirós, por causa da aridez e de seus retirantes. Contudo, sua obra dá força e voz às mulheres, personagens de fato esquecidas em boa parte da literatura. Pelo menos, digo esquecidas, na questão de dignidade de suas jornadas. Sua obra surge como correção histórica mostrando que o desafio de suas mulheres eram ainda maiores?

Discutir a condição das mulheres é urgente, não tinha como isso não aparecer no Desesterro. Se temos uma literatura predominantemente masculina, em termos brutos temos uma literatura que cuida de metade da experiência do que é ser humano (em termos brutos, repito, já que já os que sequer se identificam em gêneros). É como ver a lua girar e esquecer que giramos juntos e que nada sabemos sobre o seu lado escuro. É claro que um escritor homem pode escrever sob o ponto de vista de uma mulher, não é esse o ponto. O ponto é: precisamos, como sociedade, conhecer a experiência de ser mulher, a experiência do corpo feminino, tão bem quanto conhecemos a experiência masculina. Estou falando de estruturas. A jornada do herói, que pauta tantas narrativas, é uma experiência essencialmente masculina. O que seria uma experiência feminina? É uma das perguntas que tento responder em cada frase que escrevo.

5 - Aproveitando que enveredei pela discussão acadêmica, vamos falar um pouco disso. Você é graduada em estudos literários e mestre em teoria literária. Você julga que a informação é um fator importante para o autor?

Para mim, o mais importante é ser capaz de viver o presente, ouvir, apreender a experiência. Ler muito, que é outro jeito de experimentar o mundo. E escrever, porque como todo gesto a escrita exige repetição até que não seja mais necessário pensar, apenas fazer. Ir para a Unicamp mudou minha vida, porque encontrei outros leitores, bibliotecas ótimas, outro mundo; tive que sair de casa para enxergar, no incômodo com a academia, minhas experiências como moradora da periferia, criada na Umbanda, enfim. Foi uma jornada e tanto.

6 - E aproveitando seus conhecimentos no campo dos estudos literários, como você observa a atual produção brasileira? Temos de fato uma literatura nacional sólida?

Tenho a impressão de que ainda não estamos na colheita, mas que muito já foi plantado. Muita gente escrevendo, mas que ainda não escreveu sua grande obra, dá para sentir. E isso é ótimo. Se estivéssemos no auge, o destino era ladeira abaixo.

7 - Além disso, como você observa o enfrentamento entre o que é chamado literatura acadêmica e literatura comercial? é uma discussão válida?

É quase uma questão psicanalítica, mas não muito prática. Claro, estou falando aqui de literatura, não de livros religiosos ou de colorir. A literatura fantástica me tornou uma leitora apaixonada, mas em algum momento precisei de mais e só encontrei em Cem anos de solidão. Há espaço lógico, o que não há é leitor, cultura literária (o que resultaria em mais meios de divulgação, discussão e afins), líderes interessados. Precisamos de estratégias sistemáticas de disseminação da leitura como hábito, assim não ficamos todos disputando o último leitor do pacote (ou o último crítico, conforme for). No fundo, acho que precisamos trabalhar reconectando a literatura e a vida no imaginário das pessoas, mas pode ser ingenuidade minha.

8 - Retomando Desesterro. Como surgiu a ideia, bem como a escolha de sua narrativa. Em certos aspectos é uma obra perturbadora (no bom sentido), foi difícil escrevê-lo?

Desesterro é uma coleção de experiências perturbadoras que eu fui ouvindo, juntando, inventando, histórias que me afetavam e que não estavam sendo contadas. O Tonho é um personagem que eu vi muitas vezes cambaleando para subir a rua de casa, e eu tinha a impressão de que enquanto eu não escrevesse o Tonho ele iria assombrar minha rua e também os meus sonhos. Enquanto a gente não conta as histórias de tantas mulheres esquecidas, elas continuam vagando pela terra junto com os jovens negros assassinados, os torturados e os índios. A literatura é um jeito de rezar por todas as almas que além de mortas foram esquecidas, muitas vezes através de palavras (“deve ter merecido”, “se estivesse na igreja não tinha morrido”, etc.).

Se foi difícil? Acho que sempre é. Tinha uma ambição e total inabilidade para cumpri-la. Tive que ir atrás de me tornar uma escritora capaz de escrever esse romance e não outro, porque acabou virando uma cisma. Foi como viver dias e mais dias em um corpo assombrado, e sem poder sair porque do lado de fora a loucura espera e duvida. Mas foi maravilhoso, também, porque me descobri capaz de viver minha ancestralidade como eu nunca imaginaria.

9 - No livro, suas mulheres sobrevivem num mundo totalmente adverso, e você demonstra isso com acontecimentos eloquentes como a própria antropofagia presente na obra, entre outras questões marcantes. Por que você acha, que nós, sociedade, (e homens principalmente) criamos tantas dificuldades para as mulheres? E ainda, você vê sua obra como uma bandeira ideológica levantada?

Uma bandeira, não. Várias. A questão das mulheres está em evidência agora. Mas você pode encontrar no livro o esforço de dar uma dimensão quase mitológica à fome, porque o contrário disso, que é transformar a fome em números, gera discursos contra programas básicos de combate à extrema pobreza. Mesmo o personagem masculino está enredado por suas condições ambientais e sociais, o vício do Tonho é o vício da repetição histórica das tragédias, nós precisamos agir para não sermos tomados por ela como ele é tomado pelos cães. Todo o trabalho poético de desautomatização da língua e cada uma das surpresas colocadas no texto são também bandeiras, não há nada mais político do que a língua e não há nada mais urgente do que nos tornarmos conscientes da dimensão coletiva da nossa existência.

10 - Para encerrar com uma questão mais amena. Qual a sensação de receber um prêmio tão importante e relevante? Dá para dar uns pulos de alegria?  

É empoderador. Pude sair do armário: sou escritora. Dei vários pulos de alegria, ainda dou. Consegui isso sem fazer nenhuma concessão, é uma vitória e tanto. Ver o livro impresso, outro sonho. Mais: um privilégio. É meu dever aproveitar com todos os nervos. Mas do lado de fora da casa, segurando minha mala, a loucura sempre espreita.

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