O Blog Listas Literárias leu Desesterro, de Sheyla Smanioto publicado pela editora Record; neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro, confira:
1 – Desesterro de Sheyla Smaniotto é um sopro de originalidade na literatura brasileira contemporânea sendo distinta de seus pares mas que ,no entanto, se constrói pelos ecos e pilares de importantes escolas literárias brasileiras bebendo do passado para produzir algo novo no presente. No melhor sentido da palavra, é uma obra pretensiosa;
2 – Vencedor do Prêmio Sesc de Literatura de 2015 o livro reforça a importância deste para o cenário da literatura brasileira, visto que o mesmo tem conseguido revelar nomes que certamente estão revitalizando a literatura nacional como no caso desta obra que certamente se tornará referência. Sheyla Smanioto consegue fugir dos padrões ainda que use ferramentas conhecidas e com isso nos entrega uma obra desconcertante como há muito, certamente não se via por aqui;
3 – Contudo, antes de mais nada creio que deveria falar sobre a presença no passado desta obra. É que na verdade, talvez pela grande qualidade literária, talvez pelo estilo, Desesterro é um livro contemporâneo mas que, no entanto, parece ter sido escrito no passado. Tal impressão fica ainda mais presente pela própria ambientação sem demarcações explícitas do tempo, o que pode tornar a história como atual, ou então se passado no princípio do século passado quando a migração para São Paulo era muito presente. Porém como a fome e a migração persistem, mesmo que em escala menor, (o que não podemos dizer da violência contra as mulheres que permanece estável) não seria absurdo dizer que as Marias desta obra são de nosso tempo. Porém não é bem sobre esse passado que pretendo falar, mas sim dos das escolas literárias que parecem colaborar para construção deste romance que não absurdo podemos aproximá-lo de O Quinze, de Rachel de Queirós por causa de suas ambientações áridas e famintas, como também podemos colocá-lo dentro da escola modernista, algo que fica claro em seus neologismos (vejamos o próprio título) e principalmente àquilo que Michel Laub e Noemi Jaffe chama no texto de orelhas do livro como “torções gramaticais” em que a autora não se rege por qualquer regra ou norma. Há tempos não vemos uma publicação tão adepta ao time da “contribuição de todos nossos erros”, sem falar na estrutura fragmentada e capaz de provocar tanto estranhamento quanto um Memórias Sentimentais de João Miramar, de Mário de Andrade, outra obra que aliás podemos aproximar de Desesterro. E ainda com essa presença forte nas escolas do passado, impossível negar a veia naturalista em suas descrições cruentas e impactantes, além, é claro, de despejar sobre o leitor uma série de anormalidades tão sórdidas quanto um Noite na Taverna. Por isso, Desesterro é uma obra ambiciosa e cujas pretensões grandiosas se evidenciam nas técnicas usadas pela narrativa;
4 – Ainda quanto as marcas do estilo modernista presente nesta obra, reforço a natureza de sua construção sintática cheia de desobediência e construções marcadas pelas metáforas, sinestesias e outras figuras que mais do que demonstrar recursividade, revelam uma riqueza de estilo de uma prosa destinada a ser lírica e trágica;
5 – Porém, se Sheyla Smanioto usa de recursos técnicos que nos remetem ao passado, ao mesmo tempo ela aborda com vigor um tema poucas vezes apresentado com qualidade pela literatura brasileira: a violência e o abandono praticados contra nossas mulheres. Numa obra em que a presença masculina é tão somente quando do antagonismo e da perpetração do medo, suas mulheres precisam ser fortes, mais do que isso, precisam sobreviver num ambiente hostil e perturbador. E esse é o caso de todas suas Penhas e suas Marias que precisam enfrentar um mundo que lhes pisa por sobre suas cabeças e produz cenas de puro terror, mas que no entanto, são cenas do cotidiano de muitas mulheres da vida real. De certa forma é como se a autora elevasse o próprio fato de viver como inimigo de suas mulheres, pois o abandono, o esquecimento, os homens, a fome, entre outras coisas surgem como se quisessem expurgar do mundo suas mulheres;
6 – Esse ambiente hostil é então apresentado de uma forma crua, horrenda. Sangue, carne e terra são os elementos que compõe o romance dotado de uma violência brutal para “machão” algum botar defeito. Novamente aproximando a obra com “O Quinze”, se no romance de Rachel os homens detinham o protagonismo, neste Desesterro é como se Smanioto mais do que uma releitura histórica buscasse realizar uma verdadeira correção histórica mostrando como o mundo é muito mais sombrio e violento para com as mulheres;
7 – Aliás, a obra para reforçar a violência e o medo que cercam as mulheres penetra pelos assuntos mais sombrios da humanidade (tanto é que a presença de um eclipse é marcante na obra) como a zoofilia, o incesto, homicídio e o canibalismo, de tal modo que autora não faz feio diante dum Álvares Azevedo ou qualquer outro autor que tivesse mergulhado pelas perversões e distorções humanas;
8 – Mas vale dizer que esta é uma publicação para leitores experientes ou então para leitores que estão pensando em penetrar um mundo mais ambicioso da literatura pois a publicação irá exigir grande concentração e capacidade de leitura de sua parte para que assim possa reconstituir a narrativa e construir seus significados;
9 – Além disso, a própria voz narrativa estabelece um jogo contínuo de informação-desinformação para com o leitor buscando constantemente confundir e impactar seu leitor através de seus fragmentos atemporais que mais desorientam do que orientam a leitura até que por fim possamos estabelecer as ligações e as teias que se tecem na constituição da trama de um grupo de mulheres abandonadas não à suas próprias sortes, o que não seria o caso, mas abandonadas à luta pela sobrevivência num ambiente cruel e avassalador;
1 0 – Enfim, Desesterro é de tirar o fôlego. Impactante e cruel certamente deverá causar forte frisson dentro da academia porque mais do que um romance político em nome de um feminismo, é um romance que apresenta o universo das mulheres de uma forma que dialoga com a realidade mas numa estética embebida de um naturalismo desconcertante. Uma obra da qual se falará muito pois tem valor de conteúdo e de estética e se diferencia dos demais numa época em que todas nossas publicações se parecem, este aparentemente deslocado temporalmente faz o caminho inverso do que se tem feito e assim se faz único e relevante.
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