10 Considerações sobre Dona Josefa, de Ana Luisa Escorel ou lembranças duma revolta

O Blog Listas Literárias leu Dona Josefa, de Ana Luisa Escorel publicado pela editora Ouro Sobre Azul; neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro, confira:

1 - Tenho percebido uma curiosa - mas não aleatória - movimentação em nossa literatura presente, com a republicação de obras passadas, em especial das primeiras décadas do Século XX ou final do Século XIX. Nossas livrarias estão com muitos lançamentos desse tipo, numa espécie de acerto com a história, já que, muitos dos dramas percebidos por autores destas épocas parecem reverberam neste tempo que se imaginou o futuro, mas, nunca pensou-se, tão arraigado no passado. Dona Josefa não pertence a este grupo, contudo, caminha por trilhas semelhantes, num romance histórico que vai ambientar-se em tal tempo, mas com marcas que bem poderiam falar do presente. Tudo isso numa narrativa bastante eficiente com ecos do passado em que se transcorre a narrativa e dos dilemas do Brasil de agora. Um romance de dois tempos, quase, mas uma narrativa de uma só problemática;

2 - Trata-se, portanto de contundente romance histórico, escrito numa linguagem que une dois tempos, e nos soa bastante verossímil. Nele, Ana Luisa Escorel retorna a tempos revoltosos deste Brasil, o que nos parece a ordem comum, com uma ou outra exceção de calmarias. É meados de um Século XIX, uma Brasil polarizado entre liberais e conservadores, e com uma série de revoltas espalhadas pelo território. No caso deste romance, com especial atenção para a Revolta do Araxá em 1842;

3 - Para tanto, a autora parte de uma personagem real para a constituição do romance histórico. Todavia com ela avisa num posfácio bastante explicativo desentranha "a ficção de sua parcela de realidade, esperando atender não apenas um possível interesse acerca do destino da personagem-chave da qual se inventou praticamente tudo, com a licença do pouco que se tinha dela". A bem da verdade, os elementos pós-textuais são relevantes para a construção do contexto à época, como veremos no respectivo posfácio e na bibliografia apresentada. Além disso, produzem farta documentação das fontes e influências que inspiraram a autora na elaboração de seu trabalho;

4 - Dito isto, podemos partir portanto para olhares à obra em si. No romance, temos Dona Josefa, mulher de pulso firme e atuação não muito comum à sua época, partilhando a administração dos negócios da família, estando presa por seu envolvimento na revolução contra o Império, acaba pelas reminiscências da memória constituindo-se enquanto personagem, desde seu casamento arranjado ao presente na prisão infecta que fora relegada;

5 - Nesse lugar insalubre e de avaliação da vida e de reforço de suas próprias convicções, em sua interação com Salvador, prisioneiro que fora alforriado e está na cadeia há algum tempo, além dos traços de amizade que nascem nos dois, em seus diálogos e construções de memórias farão desfilar todos os costumes e contradições de uma época;

6 - Nesse sentido a linguagem escolhida para a narração cumpre seu papel, capaz de soar-nos antiga, poeirenta como são as coisas tocadas pelo tempo. Se inicialmente possa causar estranheza, faz jus à ambientação do cenário de um tempo não apenas diferente, mas de costumes outros, numa sociedade que vivia suas efervescências, lidando com as decadências e com os novos desenvolvimentos de um turbulento momento. Época de casamentos arranjados e dias de viagem para apenas firmar o pacto. Tempos de adequação que vigia, assim como época que novos ideais floresciam. Tudo isso está aparente na narrativa de Escorel, e com propriedade salta em imagem ao leitor;

7 -  Contudo seria um erro pensarmos na obra como apenas retratos de uma época, mesmo que com toda a contaminação da caminhada histórica. Seria reduzir o trabalho, já que na verdade a cena é mais uma superfície dos dramas mais profundos que constituem seus personagens, especialmente Josefa e Salvador. A partir deles acompanhamos não apenas mudanças, mas construção de novos valores que muitas vezes conflitam com as opressões do modelo social em vigência, de modo que não apenas retratos de uma revolução, é também narrativa sobre rebeldia e fibra;

8 - Além disso, embora mergulhado no histórico, os debates nacionais ali representados ecoam nosso presente naquele passado já remoto. É um cenário polarizado, de cisões últimas como veremos no comportamento do boticário e da própria Josefa. A seu modo, ao recriar um de nossos turbulentos períodos, Escorel reforça o quanto seguimos brigando entre nós mesmos e de como esta nação tem se constituído por certo maniqueísmo comportamental que volta e meia cinge a sociedade em duas partes;

9 - Sem falar que o romance acaba trazendo luz a novos e grandes pequenos personagens de nossa história ao reproduzir ficcionalmente Josefa Maria Roquete Batista Franco Carneiro, nesta ficção figura interessante e de relevante interesse;

10 - Enfim, Dona Josefa é um potente romance histórico, que numa narrativa de tessitura bastante lírica em sua prosa, constitui um importante olhar sobre certa e perniciosa tradição autoritária de um país não raro dividido em polos antagônicos que se engalfinham e lutas que já nos parecem "eternas".



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