10 Considerações sobre Vila dos Confins, de Mário Palmério ou sobre os péssimos hábitos de uma nação

O Blog Listas Literárias leu Vila dos Confins, de Mário Palmério publicado pela editora Autêntica; neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro, confira:

1 - De uma prosa que é um deleite, mas com uma temática a mexer em nossas mais profundas e doloridas feridas, Vila dos Confins é nova edição do romance de Palmério, que escrito nos anos 50 e tratando dos processos eleitorais das primeiras décadas do Século XX no Brasil, é mais necessário - e contemporâneo - do que deveria ser. Um retrato de um país a mercê do autoritarismo, das pequenas e grandes corrupções e de um sistema eleitoral viciado e podre desde o seu nascimento onde a inocência está morta para quaisquer dos lados que se olhe;

2 - Mas antes que prossigamos, algo que raramente o faço nas análises e leituras aqui do blog: as realidades pessoais do leitor. Mas faz-se interessante no caso desta narrativa compartilhar alguns elementos com os leitores do blog, em sua grande parte visitantes de grandes metrópoles do país e, por isso, talvez com alguma distância das "realidades" de Vila dos Confins. Agora, no caso de alguém como este blogueiro, habitante de uma pequena cidade brasileira com seus pouco mais de dez mil habitantes e uma política acirrada historicamente a dividir o lugar, embora distante temporalmente, o comportamento político em Vila dos Confins dificilmente diferirá muito desta minha cidade ou qualquer outro de um Brasil um pouco mais profundo. Os mesmos vícios, as mesmas irregularidades, as mesmas falhas que fazem da democracia algo um tanto ilusório encontrarão paralelos neste romance. E com isso também não quero dizer que é diferente nas grandes metrópoles, apenas que suas imensidões ajudam a camuflar o sistema viciado e podre, algo que numa cidade pequena é escancarado. Assim entre pequenos avanços e enormes retrocessos, o jeito de pensar política denunciado em Vila dos Confins está mais presente do que nunca;

3 -  Aliás, é possível realmente pensar no romance como uma denúncia com estética. Nascido do que inicialmente seria um relatório, depois crônicas, e enfim um virtuoso e acachapante romance, o romance trata dos processos e comportamentos eleitorais de um país marcado pelo autoritarismo, pela violência e pela disputa do poder e as diferentes relações que isso tudo provoca. A ideia surgida a partir da atuação parlamentar e como educador do autor, ao optar pela estética, acaba mais do que um romance, nos legando uma das mais lúcidas e realista análise da política nacional, mais próxima da realidade que muitas obras da própria ciência política aliás. Vila dos Confins em todas as suas denúncias e contradições constitui-se como importante ferramenta não só para analisar o passado, mas para também nos jogar luzes sobre o presente;

4 - Na obra somos apresentados a diferentes personagens, mas especialmente o Deputado Paulo Santos que é figura central no romance e de interessante simbologia. Trata-se de um homem que embora bem-sucedido na política, volta ao interior mobilizando suas bases política na primeira eleição de Vila dos Confins em permanente contraste com a angústia de um homem que sente-se aprisionado pelo poder, alguém que desejaria estar pescando, mantendo e preservando as amizades em vez da política. Entretanto, embora sempre reticente e saudosista ele segue em frente, cioso e dedicado para com os correligionários, comprometido em eleger o prefeito da cidade enquanto lida com as tramoias e ataques dos adversários;

5 - Numa verdadeira peregrinação em arregimentar eleitores e candidatos, ao mesmo tempo que o romance vai descrevendo o lugar com tintas naturistas, vai desnudando as gentes e os comportamentos num retrato marcante não apenas do lugar, do sertão ermo de longas distâncias, de modo que as amizades e inimizades vão sendo postas a público, as vaidades, os anseios e uma certa selvageria pela sobrevivência num mundo marcado especialmente pela violência;

6 - Tudo isso acaba, claro, reverberando de forma intensificada na disputa eleitoral, quando não apenas candidatos e eleitores entram na roda, mas jagunços, tocais, corrupções em todas as escalas... Nessa abordagem, claro, alguns elementos são muito específicos de uma época, como a forma e modelo de votação e candidatura, mas, entretanto, o assustador é que aquilo que está no conceito, no comportamento ético de eleitores e políticos não mudam. Longe da festa da democracia, a eleição não passa de uma baile de hipocrisias movido a vendas de voto, que se na época retratada vendia-se o título, ainda hoje permanece mesmo com as mudanças nos sistemas de votação, pois sim, pessoas ainda vendem votos, candidatos compram votos. Aliás, Pereirinha é curioso personagem, a mostrar os engôdos eleitorais desde o império. É mestre em descobrir fraudes e exemplo de que mudam-se os truques, mas não as intenções. E são estes tipos de coisas que certamente qualquer leitor de uma cidade mais ao interior do país reconhecerá não como coisas do passado, mas tão presentes, tão em vigor, que nos leva a questionar sobre todas as ilusões que nutrimos;

7 - Além disso, intimamente ligada à política nacional, aos processos eleitorais, a farsa é outra abordagem de Palmério, e com a virtude de não produzir santos ou heróis, já que mesmo seus protagonistas apostatarão diante o sistema e com isso deixando claro, não há santos ou inocentes na corrida eleitoral de Vila dos Confins... não há... é o sonho de uma democracia, de uma república derrubados no nascedouro e antes dele, porque as raízes, como perceberemos, são antigas, entranhadas na terra e adubadas com carne, sangue e desilusões;

8  - Sem falar na abordagem de Palmério da nefasta e permanente "tradição" e relação entre autoritarismo, política e violência no Brasil. E nada mais pungente e impactante com o desfecho desta ópera tupiniquim, no desalento e nas tragédias que nos chegam com o desfecho da leitura. O clímax de uma prosa de todo lírica, insinuante como os rios em que andam seus personagens, não só amplia de forma catártica o desalento com todos os acontecimentos, mas nos deixa como última e distópica mensagem a violência como vencedora de uma nação que só faz perder. Ao menos é o que nos parece com a metamorfose de Xixi Piriá, mascote que muda de status em um literal batismo de sangue;

9 - Portanto, são muitos os elementos interessantes nesta obra. Uma porta para diferentes leituras, da força de certa herança naturalista que permeia a literatura brasileira desde Aluísio de Azevedo a sua prosa que talvez encontremos diálogos com a obra de Guimarães Rosa (a quem Palmério sucedeu na ABL). Aliás, o sertão de Palmério conversa com o sertão de Rosa, assim como a riqueza com que desenham suas paisagens e suas gentes. Vila dos Confins é dos romances que dá força às estórias, à oralidade, e capaz de ler a sociedade com uma estética capaz de tornar ainda mais potentes nossas cruezas e vilanias;

10 - Enfim, trata-se de uma leitura capaz de ajudar-nos a nos entender enquanto país. Sem julgamentos baratos, Mario Palmério encontrou na arte uma forma bem mais eficiente do que relatórios para denunciar nossas contradições. Um livro ainda reconhecível para a maioria de nós, uma obra que inclusive é capaz de dizer muito mais da política de hoje, que os articulistas dos jornais e revistas. Uma obra que mostra o quanto literatura e sociedade andam juntas numa espécie de divã permanente em que todas as nossas coisas saltam às claras.


  

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