10 Considerações sobre Anna Kariênina, de Liev Tolstói ou sobre máscaras sociais

O Blog Listas Literárias leu Anna Kariênina, de Liev Tolstói relançado pela Companhia da Letras; neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro, confira:

1 – Quando nos dedicamos à leitura dos grandes clássicos, como é o caso de Anna Kariênina, será sempre um desafio abordar ou dizer algo que já não tenha sido objeto de intensos debates, por isso, em grande parte as considerações neste post irão mais no sentido de refletir por que ainda nos importa a leitura desta obra escrita ao final do Século XIX e cujo drama de suas personagens é narrado com extremo domínio da arte por Liev Tolstói;

2 – Escrito entre 1873 e 1877, Anna kariênina passeia pela sociedade russa deste período impregnado de um olhar crítico capaz de desnudar as relações de um modo a explicitar as máscaras que conduzem as relações sociais e cujo contraponto será sempre evidenciado pela inaptidão de Liévin em mover-se nesse baile de fingimentos, falsidades e hipocrisias que impregnam a grande parte dos habitantes desta ficção;

3 – É nesta sociedade em pleno processo de transição para algo novo, mas ainda submetida a regras conservadoras e controladoras é que dar-se-á o romance entre Anna e o jovem Conde Vronski, logicamente uma paixão proibida por ser adúltera e pela qual será cobrado um alto preço de Anna, que além de toda a perdição social que será relegada, terá ainda de lidar com suas próprias complexidades, em especial, a forma um tanto insana de sua paixão que a levará ao final a mais drástica das soluções, uma solução que lhe fere inclusive duplamente, pois além dos castigos lhes impostos no ambiente interno do romance, seu desfecho externamente é uma nova punição, dessa vez perpetrada pelo próprio Tosltói que dá a Anna o destino cobrado pela própria sociedade;

4 – O livro desde sua publicação vem mantendo viva esta que é uma das histórias de amor mais conhecidas da literatura, todavia, para além do romance, a vitalidade da obra certamente está ligada ao fato de que muitas de suas temáticas ainda não foram plenamente resolvidas pela sociedade, e também pela irrefutável qualidade estática com que Tolstói narra o romance, de tal modo que a leitura de Anna Kariênina proporciona-nos uma verdadeira imersão a seu universo de modo que é como se estivéssemos diante de pessoas e acontecimentos reais;

5 – Tal imersão ocorre por uma série de elementos capazes de deleitar a qualquer leitor. Um destes elementos é sem dúvida a capacidade de apreensão das complexidades humanas e a forma que Tolstói as leva para a literatura, de modo que temos a sensação de sermos um demiurgo capaz de espreitar pessoas vívidas em seus dramas através da narração do romance, pois Tolstói como poucos é capaz de pelas palavras descrever as diversas e distintas gradações do comportamento humano;

6 – Além disso, a leitura de Anna Kariênina não deixa de ser o acompanhamento de um relato histórico, ainda que escrito e reelaborado pela literatura. No romance, não só somos levados a transitar para estrutura social russa do período, mas também o fazê-lo com criticidade visto que ao leitor as hipocrisias e incongruências de tais relações estão desnudas. Por conseguinte, no contexto histórico, o romance ainda nos traz não só comportamentos, mas elementos históricos que surgem na narração, e que em muitos casos avivam as principais questões e problemas daquele período, algo que torna o livro ainda mais interessante, inclusive em seu aspecto político e social;

7 – Agora, a este leitor, dentre tantas outras qualidades da narrativa de Tolstói, certamente uma das mais atraentes e fascinantes são os instantes em que o autor assume-se um pintor com as palavras quando em determinados momentos sua narrativa como se fosse uma tela impressionista vai pintando certas cenas estabelecendo não só a paisagem mas seu jogo de luzes e sombras capazes de interagir com a percepção dos leitores como se tais pequenos trechos da narrativa fizessem saltar um quadro de Monet;

8 – Mas não só em pinturas etéreas a arte da narrativa salta aos olhos dos leitores, pois o controle narrativo de Tolstói também nos é uma grande demonstração didática de como descrever os tormentos humanos, de modo que o autor como poucos é capaz de transpor para o papel as tensões e os dramas de um modo que a loucura ou a insanidade do último trecho do caminho torne-se algo sem possibilidade de fuga, algo que fica muito nítido na própria jornada de Kariênina cujos últimos passos nos propõe um embate contra a aflição e o terror da descoberta fatal de que as possibilidades se extinguiram, ao menos nos pensamentos turbulentos e cegados pela falta de perspectiva, que é o caso de Anna;

9 – E todas essas competências narrativas verificar-se-ão na grande parte das personagens deste romance cuja principal marca seja então o caráter humano com que são retratados, e isso quer dizer em suas virtudes e em suas falhas, porque assim como as personagens de Tolstói nossa sociedade é composta por pessoas falíveis e que em grande parte buscam proteção, seja por medo, por esperteza ou mesmo por maldade, sob diferentes máscaras, mas que para além destas máscaras há indivíduos tomados por questionamentos e dúvidas que os acompanham a cada passo, seja numa relação como a de Stiepan que embora ciente de seus fracassos joga com desenvoltura no tabuleiro social, seja como Liévin, um homem dotado de incertezas diante de tudo, inclusive em sua relação com a religião, personagem que para a época certamente deve ter dado o que falar;

10 – Enfim, Anna Kariênina é uma leitura necessária não porque mantenha-se atual, mas sim porque além de uma verdadeira demonstração da arte de como narrar e produzir centenas de portas para reflexão ou debates, como poucos romances é capaz de penetrar as distorções e as problemáticas inerentes a essência humana, e mais do que um romance sobre adultério ou um retrato da sociedade russa de sua época, desvela na verdade uma miríade de contradições e complexidades que são narradas como que por um ourives em que cada ação de suas personagens leva-nos a uma ou outra percepção capaz de ligar obra e leitor simbioticamente.



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