10 Considerações sobre Os Meninos que enganavam nazistas, de Joseph Joffo

O Blog Listas Literárias leu Os meninos que enganavam nazistas, de Joseph Joffo publicado pelo editoria Vestígio. Neste post veja as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro que deu origem ao filme de Benoit Guichard e Christian Dugay que estreou nesta última sexta-feira, confira:

1 - Com ares de ficção mas totalmente autobiográfico, o livro Os meninos que enganavam nazistas é uma leitura interessante que sob a mascara da aventura narra a jornada dos irmãos Joffo em sua fuga permanente entre os anos de 1941 e 1944 dos nazistas em uma França ocupada em que a diferença entre escapar momentaneamente e ser mandado para uma câmara de gás é um piscar de olhos;

2 - Narrado por Joseph Joffo que à época tinha 10 anos, o livro é um destes exemplares de difícil filiação porque sua estrutura constrói-se como um romance de aventura, contudo, neste caso a aventura narrada trata-se da experiência pessoal de Jo e de seu irmão Maurice quando em 1941 iniciaram uma longa peregrinação pela França, precisando sobreviver e escapar das garras cada vez mais apertadas dos nazistas sobre os judeus franceses, tudo isso num país que vivia numa espécie de semi-estado-de-realidade, diante de uma estranheza da tentativa de manter as aparências de normalidade, enquanto para uma minoria perseguida, a guerra ao mesmo tempo que lhes fungava os cangotes, mantinha a aparência de certa distância;

3 - É neste cenário que os irmãos Joffo são apartados da família que precisa dividir-se para lutar pela sobrevivência, e ainda que ao final da jornada tenhamos baixas, e aos olhos de um jovem de hoje tal necessidade soe quase inverossímil, ao final, para os Joffo a insistência em sobreviver e não deixar-se capturar pelos nazistas dá certo quase que por completo, um pouco pelos desígnios de certa "sorte", mas principalmente pela criação em meio ao horror de uma rede de assistência e resistência que impediu que as monstruosidades da Segunda Guerra levassem Hitler à vitória;

4 - Publicado então em 1973, cerca de trinta anos depois da experiência, o livro acaba sendo um exercício à memória e a necessidade de compreender tudo aquilo que vivenciara, por parte de Jo Joffo, que curiosamente dando à narrativa esta proximidade com a ficção e a novelização de sua experiência real irá na maior parte do livro narrar a ação em tempo presente que vez ou outra é tomada por flashforwards ou então  inversões narrativas em que passa a narrar na forma pretérita de forma bastante intencional, como veremos em determinado trecho, estilística que dá ao livro uma identidade bastante original;

5 - Aliás, é bastante curioso e interessante observar o epílogo em que o autor comenta sobre a motivação da escrita do livro trinta anos depois da experiência vivida. Há em sua reflexão uma certa incerteza e segundo ele, o livro, "saiu de mim naturalmente, talvez, simplesmente, tivesse necessidade de escrevê-lo" disse Jo modo que ao leitor mais atento perceberá justamente a construção de uma narrativa que procura por respostas para suas incompreensões diante uma experiência desumana e sem qualquer lógica;

6 - Talvez aí, então, esteja justamente a busca de um sujeito que passara a infância fugindo como a caça de um predador, e que agora inverte os papéis tornando-se um caçador, não um caçador medonho, como o eram seus algozes, mas um caçador de sentidos para tudo aquilo que vivera e que a partir da prática de transpor para a escrita irá revisitar seu trauma levando para o livro então toda a sua jornada, que se por um lado traz afinidades aos romances aventureiros que lia, por outro como o próprio Joffo irá transpor para a obra, chegará o momento em que ele perceberá que tudo aquilo não se trata da jornada de um herói romanesco, e é justamente ao ser tocado por esta epifania que ruirá os muros que dividem a infância ingênua e o terror adulto, e no caso um mundo adulto invadido pela guerra; será enfim uma aprendizagem terrificante porque se constrói pela descoberta de tudo aquilo que não gostaríamos ter de descobrir, justamente o lado mais perverso dos seres humanos;

7 - Além disso, todavia, esta busca por compreensão, e aí creio que uma das virtudes da escrita, permanece nublada visto que os tempos que separam autor-narrador-personagens-sujeito-real mostrou-se insuficiente para levar a qualquer um deles respostas eloquentes para as perguntas explícitas, implícitas ou simplesmente ocultas na narrativa de Joffo, pois sua voz narrativa carrega justamente uma pergunta incômoda e ainda não compreensível para os que creem numa sociedade humana civilizada e tolerante ao outro, uma questão, portanto, sem respostas prontas, completas ou livres de complexidades, "afinal, como nos permitimos que ocorram este tipo de coisas?"

8 - Nesta edição da Vestígio não menos interessante e importante é o posfácio "dialogando com os leitores" de 1992 em que o autor aborda alguns pontos discutidos em diferentes momentos com diferentes leitores. Nessas discussões há bastante perguntas sobre "os momentos que as coisas parecem não se encaixar", os "golpes de sorte" etc. No posfácio há por parte de Joffo, talvez numa necessidade de validação, argumentar tais perguntas, ao que justamente é quando separam-se literatura e vida real, e, portanto fala da vocação desta escrita. Na peça literária, geralmente se permite e se exige que as coisas ao final tenham algum sentido e as peças se encaixem. A vida real, contudo, é diferente, e nem sempre encontraremos sentido, e essa ausência ser-nos-á inclusive essencial para que possamos continuar evoluindo em buscas de novas respostas para novas perguntas;

9 - Vejamos que até aqui proseamos mais sobre a "alma" da obra que efetivamente sua ação, em grande parte porque esta é uma das narrativas que seu grande valor esta para além da história, contudo, no entanto, neste momento podemos dizer que este é um trabalho que certamente também carrega seus atrativos para os que dedicam-se às tramas de aventuras, contudo compreender sua relação com a realidade, adentrar o universo da narrativa conhecedor dos contextos e viajar pela busca de compreensão de Jo Joffo à sua jornada que aqui não ousaria de chamar fantástica porque num mundo decente e normal ninguém deveria ter de cumpri-la;

10 - Enfim, esta é uma leitura carregada de emoção, adrenalina, mas acima de tudo uma jornada em busca de algo que talvez nunca nos será clara que é compreender como a humanidade é capaz de praticar tantos atos tenebrosos como os que ocorreram durante a Segunda Guerra Mundial. Ademais esta não é uma pergunta simples, e conforme perceberemos no posfácio de Joffo ele mesmo permanece anos após a experiência ainda incapaz da compreensão plena dos fatos vivido, e que ainda é capaz de pensamentos contraditórios, como o fato da contradição de ao final não perceber que não errara ele e outros franceses em ver em Petáin um herói, mas sim no fato de ainda crer na "necessidade de heróis" e "salvadores", além de sua contradição pacifista que ao final ainda, mesmo que superficialmente tente "compreender" a guerra e mesmo aceitá-la. A não aceitação geral irrestrita da guerra, é afinal condição fundamental para que um dia possamos de fato evoluir rumo à civilização utópica que um dia ousamos sonhar.



p.s.: A tradução do título não me agrada muito, acho algo mais próximo de "un sac de billes" conseguiria passar melhor "a alma" da narrativa. A opção brasileira parece-me didática demais, explícita de modo direto, talvez em busca de um público mais amplo.


    

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