10 Considerações sobre Mulheres de Cinzas ou como semear a terra com sangue…

O Blog Listas Literárias leu Mulheres de Cinzas, de Mia Couto publicado pela editora Companhia das Letras; Neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro:

1 – Mulheres de Cinzas é um romance político cujas intenções é a de dar novas perspectivas à colonização de Moçambique pondo em xeque a relação colonizador/colonizado, e o faz de uma forma tradicional ao romance construindo a narrativa a partir de uma história (ou não-história) de amor, o que por si só já pode provocar uma série de debates e reflexões;

2 – Construído a partir de duas narrativas em primeira pessoa que se complementam, temos por um lado a voz da protagonista negra, Imani que carrega toda sua carga cultural, ainda que poluída pela aproximação com os portugueses, e, por outro lado a voz de um militar e degradado Germano de Melo que através de cartas ao seu conselheiro superior, além de revelar seu ponto de vista, engendra a teia da trama numa única história;

3 – Contudo, antes de penetrarmos ao romance em si, é importante observarmos de forma detalhada a escolha e a apresentação da estrutura narrativa e suas vozes, que para além dessa estrutura característica geralmente também vista em obras descompromissadas, temos em suas vozes detalhes que podem gerar discussão entre críticos. Primeiro, vejamos que a narrativa em primeira pessoa feita por Imani permite-se em muitos momentos uma onisciência estranha a uma personagem humana (especialmente numa obra de reconstrução histórica) afetando de certa forma a autoridade da voz. Do mesmo modo, a voz de Germano através de suas cartas pode causar estranha pela forma íntima e narrativa da escrita, que ainda se justificando ao longo dos surgimento das cartas, mesmo assim, num olhar mais crítico podem ser consideradas problemáticas para a narrativa. Todavia, esse adendo é uma percepção que será percebida num grau de exigência elevado;

4 – Retomando a obra em si, Mulheres de Cinzas é o primeiro volume da trilogia As Areias do Imperador em que Mia Couto remonta a guerra que assolou o sul de Moçambique no fim do século XIX, e já nesse primeiro volume o leitor terá em mãos acesso a uma cultura rica e em conflito numa trama que a dominação e subjugação dos povos fala da construção de identidade ao mesmo tempo que revela a violência cometida contra aquilo que é diferente da cultura dos vencedores;

5 – Por isso em alguns momentos a obra se aproxima da própria história do Brasil, que assim como Moçambique foi colonizado pelos portugueses. Através de Germano de Melo e dos demais portugueses presentes na obra percebemos situações que aconteceram por aqui também, especialmente, como as personagens conseguem demonstrar por ações e por palavras suas reais percepções e sentimentos pelos povos colonizados, mostrando com isso desprezo pela cultura e crenças existentes numa dominação que se dá pela imposição dos ideais portugueses, seja na religião, seja na cultura;

6 – Justamente por isso, o conflito presente em Imani e sua família é tão grande, pois no meio de todos esses acontecimentos eles estão nem de um, nem do outro lado, já que mesmo estando os Nsambe junto dos portugueses, e, até mesmo já adeptos de sua cultura, ainda assim não são considerados pelos colonizadores, ao mesmo tempo que precisam lidar com as divergências com os povos locais, desconfiados e contrariados pelo partido tomado pelos Nsambe. Nesse mundo sangrento eles não estão em nenhum dos lados, com isso sofrem também em dobro;

7 – Também dentro de suas propostas, o livro se propõe a tratar da guerra, observando-a de uma forma crítica e eloquente que em momentos precisos da narrativa constrói frases que deveriam solidificar-se em cada ser humano para que não esqueçamos a insanidade que é tudo isso;

8 – E o interessante é que essa discussão não se dá nas grandes esferas da guerra, mas sim nos mais recônditos lugares onde ela faz mais vítimas semeando árvores e fazendo brotar cadáveres da terra. É onde a guerra faz mais vítimas que a narrativa se ambienta, em um povoado no meio da disputa imposta sem ter nenhum dos lados a lhe proteger, além de ter em Germano de Melo uma espécie de Dom Quixote que demora a perceber qual realmente sua missão, a de defender sem qualquer apoio uma “fortaleza” que não passa de uma bodega no meio de África;

9 – E saindo um pouco da obra para falar de sua linguagem, para os interessados e curiosos nesse campo, o livro mantém a grafia vigente em Moçambique, e ainda que pontuais apresentam boas diferentes para a língua aqui no Brasil;

10 – Enfim, Mulheres de Cinzas com sua prosa qualificada e intensa riqueza cultural de África nos apresenta um universo que em alguns momentos até mesmo dialoga com a história do Brasil, e por isso cabendo aqui mais um reforço do quanto pode nos enriquecer conhecer a literatura de povos que de uma forma ou outra,  estão ligados com a nossa própria constituição como nação, pois a obra de Mia Couto, assim como muito da literatura brasileira, versa sobre a constituição e no caso de couto, a reconstrução da identidade de uma nação, com seus conflitos e dramas que são semeados com a guerra.

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