O Blog Listas Literárias leu Latim em pó - Um passeio pela formação do nosso português, de Caetano W. Galindo publicado pela Companhia das Letras. Neste post, as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro, ou mais sobre essa coisa fascinante que é a língua que a gente fala, confira:
1 - Embora com uma introdução bastante modesta destacando que o livro não se quer como "uma história aprofundada da língua portuguesa" e cujo modesto objetivo é o de "fundamentalmente expor as etapas do trajeto de formação da língua que nós falamos", Latim em pó em sua simplicidade comunicativa tem potencial de apresentar novas nuances muitas vezes ignoradas sobre nossa própria língua. Mais do que isso, o livro, mesmo não tomando o caminho de um texto acadêmico (mas ressalte-se com todos os preceitos teóricos acadêmicos presentes e fundamentados), deveria ser leitura obrigatória entre professores de língua portuguesa, especialmente porque, muito mais comum do que seria aceitável, encontramos entre colegas mentalidades tão tacanhas e restritas quanto ao conhecimento da origem de nossa própria língua que não raro nossa relação escolar é carregada de enganos e mitos que pouco dizem sobre nossa natureza linguística do português brasileiro;
2 - A inicialmente e mais lógica questão de todas, e não raro esquecida, o fator indicutível e inegável de que as línguas mudam. Obviamente, este é o princípio que subjaz a todo o passeio proposto por Galindo. Aliás, o próprio termo "passeio", importante escolha para o subtítulo. Retira da obra qualquer pretensão formal, um passeio difere de um estudo, nisso algo atrativo e de chamado ao prazer, passear pela nossa história, por certo difere de estudá-la. Consideramos, aliás, a ideia de passeio enquanto analogia à pesgaria, passear aqui enquanto uma isca para chamar atenção às questões de maior complexidade e profundidade que certamente brotarão nos leitores. Nesse sentido, o passeio surge como uma viagem introdutória tanto à nossa história linguística como acesso inicial a leigos a conceitos importantes sobre linguagem, linguística e especialmente, sociolinguística;
3 - Aliás, se permitem-me uma breve digressão, a leitura do texto deixou-me feliz pelas lembranças do quão profundas e bem aproveitadas foram as disciplinas cursadas na UFPEL em sociolinguística com o professor Paulo Borges, além de um ótimo curso de extensão com o professor Gilson Ramos e sua metodologia para lá de divertida que me apresentou primeiras noções do português histórico. Isso porque nos momentos mais técnicos e teóricos da obra, a memória resgatava algumas das discussões e mais importante que isso, muitos conceitos auferidos no decorrer da aprendizagem, mas, enfim, uma pequena digressão, voltemos ao nosso passeio;
4 - Outra questão, ainda no subtítulo, que é relevante abordar é justamente seu fecho "nosso português". O uso do pronome não é certamente gratuito e está em consonância com uma das teses subjacentes ao livro, a de que aqui temos uma coisa diferente, nossa, própria dos brasileiros, seja lá qual o nome se dê, português brasileiro, brasileiro, etc. Mas vale ressaltar que esta é uma seara que o livro resolve não entrar, não defende quaquer definição de nome, aliás, Galindo, questiona se essa seria uma questão prioritária;
5 - Dito isso, o passeio a que somos conduzidos se dá por meio de dezenove capítulos curtos e muito fluidos com aspectos relevantes do decurso histórico da formação de nossa língua. Para tanto, esse passeio pelo tempo e pela história de nossa língua regressa antes mesmo do português ou do latim, via de regra sempre lembrada como origem do nosso português e outras línguas indo-europeias. Fundamental, aliás, esse passeio e crucial para não só reforçar o caráter de mudanças intrínseco às líguas, mas para por em discussão o próprio ramo de latim do qual origina-se o português;
6 - Dos dezenove capítulos, dez deles são dedicados ao antes do aportar de portugueses nestas terras, aliás, terras tão ricas de outras línguas. Parte deles enquanto demonstração como os diferentes contatos linguísticos foram dando origem à estrutura da nova língua que veio a ser considerada português. Trata-se de um passeio minuncioso pela formação do português, inclusive com demonstração distintiva dessa formação comparada a outras línguas latinas, como francês, espanhol, italiano. Nisso, relevância do contato "árabe" e "bárbaro" que a partir da demonstração de Galindo, são mais que meros prefixos em nossa língua a originar uma ou outra palavra;
7 - Vencido o passeio em solo europeu, com Cabral chegamos ao nosso, à nossa terra que tem palmeiras e cujas aves gorjeiam mais que as de lá. E o passeio por aqui não deixa de ser menos interessante e não menos carregado de mudança, contatos e interações que nos trouxeram ao estado geral da coisa no nosso hoje. Do certo predomínio das línguas gerais - tratadas com destaque - às reações portuguesas e mudanças especialmente quando o português torna-se essencial na vida pragmática de uma colônia que avança;
8 - Obviamente esta parte do passeio é que adentramos às principais discussões sobre passado, presente e futuro da língua que por cá utilizamos e também nesta parte, certamente a presença da tese que aos conservadores possa soar revolucionária (o que disso nada tem, convenhamos, é observação científica): a superação do olhar simplista e redutor da contribuição indígena e africana na construção da língua que falamos agora. Justamente nesse momento entra o papel que a escola e o ensino normativa tomam nessa querela toda. Não raro, a escola e as gramáticas normativas, geralmente a contragosto, no máximo consideram a participação dos povos indígenas e dos escravizados enquanto contribuição lexical, uma palavra aqui e outra acolá ao caldeirão, em suma pequenas inserções no conjunto do nosso léxico, tipo um temperar do caldeirão que constitui nossa língua;
9 - E aqui chegamos certamente à tese mais forte quanto ao nosso caldeirão. Uma tese que foi sendo construída por muitos exemplos, inclusive os que remetem à propria aprendizagem e formação do português em sua origem. Galindo defende, a partir de sólida argumentação em estudos linguísticos, que a língua que falamos hoje é um mosaico de todos esses contatos linguísticos e mais que isso, estruturada no tipo de aprendizagem dos falantes da língua, algo bem distinto entre a norma culta e a língua que realmente falamos. É nesse sentido que o autor diz que "se é para pensarmos no português brasileiro como algom que se encontra num caldeirão, é preciso reconhecer quanto ao conteúdo desse caldeirão teve que ser mexido e remexido para produzir a nossa atual paisagem linguística", para ele "o português brasileiro foi um broto africano, flor de Luanda";
10 - Enfim, Latim em pó é um passeio e tanto, e um daqueles passeios que não esquecemos com facilidade. Uma viagem envolvente e empolgante pelo percurso histórico da língua que falamos. Mas não um desses passeios alienantes e que pouco acrescentam ao nosso conhecimento. Trata-se de um passeio teroricamente estruturado e em uma paisagem capaz de atiçar os leitores aos mais diferentes questionamentos acerca dos sons que saem de nossas bocas. Além disso, um passeio com demonstrações inequívocas de coisas que ainda precisamos superar quando pensamos no debate lingístico nacional, em especial pela razão de haver ainda muitas vozes no debate que desconhecem minimamente o funcionamento de uma língua de da linguagem. Um livro que noz faz refletir não apenas sobre a origem da nossa língua, mas seus possíveis caminhos, afinal, ela segue mudando.