O Blog Listas Literárias leu Como enfrentar o ódio, de Felipe Neto publicado pela Companhia das Letras; neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro, um testemunho pessoal de quem na história recente deste país conheceu (e enfrentou) os esgotos do poder em um país que flerta a todo momento com o autoritarismo em seus sonhos totalitários, confira:
1 - Felipe Neto é uma das personalidades mais controversas na história recente em nosso país, mas independentemente do que você pense, julgue ou acredite sobre ele, a leitura de Como enfrentar o ódio mostra-se uma leitura necessária, justamente na sua procura por compreensão deste processo controverso constituído de amplas e complexas camadas, estas também suficientes para destacar certas complexidades da nossa própria constituição social e humana. Social porque ao ler sobre seus relatos e sobre sua postura e personalidade é também ler sobre algumas questões problemáticas - e quando elevadas, perigosas - do corpo social brasileiro; e também humana porque ao cabo temos, o que nem sempre é fácil achar-se, os relatos de um indivíduo em franco processo de desconstrução e reconstrução, a apresentação de uma identidade humana alicerçada na mudança e nos múltiplos tons que nos torna quem somos. E isso é uma virtude do livro. Ao buscar demonstrar o sujeito que passa por mudanças radicais (na boa acepção da palavra) em sua forma de agir e pensar, caso de Felipe Neto, que a despeito do que você pense ou saiba sobre ele, fica o legado inegável de ter se tornado uma das personalidades mais perseguidas pelos recentes projetos autoritários que tentaram manter o poder no Brasil. Goste ou não dele, este livro fala sobre estes tempos sombrios e surreais capazes de tornar um influenciador - até então um tanto alienado nos conceitos políticos e também irrelevante - em alguém odiado pelo bolsonarismo em ascensão que, justamente ao mirar seu fogo a alguém que no passado inclusive fez coro à lógica da extrema-direita, atira-o à reflexão e à pesquisa e assim cria uma de suas nêmesis, alguém importante por saber lidar no campo em que justamente o autoritarismo bolsonarista vicejava: a internet;
2 - É sobre tudo isso que se trata Como enfrentar o ódio. Primeiramente, e isso deve ser considerado pelo leitor, poderíamos colocar a obra em uma espécie de relatos e testemunhos. Ainda que acene para tal, estamos longe de uma publicação mais profunda e dialética no que se pode pensar academicamente. O livro é em sua gênese uma narrativa do eu que procura trazer ao público a experiência pessoal de Felipe em seu enfrentamento ao poder, enquanto nos desenha paralelamente um retrato dos acontecimentos de nossa história recente. Nesse sentido, por tratar-se de uma narrativa do eu, a obra, obviamente, terá alguma presença da afirmação do ego, o que não é uma exclusividade do Felipe Neto, mas desses nossos tempos. O leitor perceberá isso nos momentos que o autor sempre busca levar-se ao centro dos acontecimentos, como o processo eleitoral, que embora importante sua adesão à luta contra o fascismo, fica-se a sensação de superelevação de sua participação. Entretanto, isso não apaga ou desmerece o resto, ou seja, compreender o texto como uma narrativa do eu permite-nos justamente realizar os balanços necessários para uma leitura crítica e com criticidade;
3 - Procuramos, portanto, neste texto analisar com criticidade, partindo dessa compreensão da narrativa do eu, as razões naturais que dará ênfase a determinados aspectos que a outros na obra. Entretanto, isso não significa dizer que Felipe Neto mostre-se revisionista de sua própria biografia. Há, obviamente, a busca de atenuantes, mas nunca o processo essencial do revisionismo que é o de suprimir nosso próprio passado; e isso adentra entre uma das virtudes do livro. Felipe Neto não esconde sua biografia que irrompe na internet brasileira usando das mesmas armas do fascismo, postura que, inclusive, em certo grau colaborou para sua popularidade. Traz à baila suas falas e abordagens problemáticas, as quais algumas hoje faria diferente. Mas acima de tudo, o livro entrega-nos um relato convincente de uma parcela muito grande da sociedade brasileira: a de uma classe média carregada de frustrações ou incômodos e totalmente alheia a um outro Brasil muito maior e problemático. Quando Felipe Neto retoma sua juventude dominada pelo pensamento de uma classe média alinhada a uma direita pouco afeita ao pensamento crítico e à reflexão, ele diz sobre ele, mas também sobre um bom pedaço de nós, e com isso coloca um tijolo importante na compreensão dos eventos que sacodem este país desde 2013, pelo menos. Hoje associado à esquerda num processo de transformação poucas vezes visto, o livro terá nesse passado febril e ferrenho de ataques ao PT e ao pensamento de esquerda ponto importante do livro. Isso porque ao contar sobre si, Felipe Neto também diz sobre uma boa parcela da juventude amorfa e desplugada das causas sociais que tomaram as ruas em 2013 e fizeram de Dilma talvez a maior vítima política em tempos recentes. Isso porque, assim como Felipe Neto relata de sua participação nesse processo histórico, assim o foi com boa parte de jovens de classe média incomodados com o PT (fruto de uma longa tradição nacional de rechaço a qualquer procura por igualdade social) e avessos e distantes aos processos políticos, jovens que serviram de combustível ao autoritarismo que sobreveio. Nesse aspecto seria injusto com Neto colocar toda essa carga apenas nele, já que muitas outras figuras da internet, jovens que eu acompanhava, como escritores, blogueiros, influenciadores em diferentes segmentos, fizeram o mesmo, alinhando-se a uma ideia antissistêmica que atirou-nos no bolsonarismo. Isso porque, e muitos encontrarão posts meus nesse sentido, jovens burgueses alimentados com o ranço à esquerda e que pouco conheciam do todo de um Brasil múltiplo, que ainda que com avanços sociais advindos da chegada do PT ao poder, insuficientes para resolver nossos problemas estruturais. Assim Felipe, como outros pares, bons exemplos de uma juventude burguesa que desconhecia que as minorias sociais viviam na luta há muito tempo e o único gigante que conseguiram acordar com aqueles chamados para a rua foi o gigante do fascismo verde-amarelo. Isso porque, como inclusive o livro demonstra, Felipe e a juventude daquela década, frutos também de uma educação que jamais esteve perto de flertar com qualquer ideia de Paulo Freire, ignoravam plenamente os oprimidos de uma nação desigual. Rever esse processo a partir da memória de um atuante relevante no processo configura um dos importantes elementos do livro;
4 - Assim como o processo de transformação pessoal já mencionado. Enquanto uns permanecem alinhados ao obscurantismo e muitos outros silenciariam quase que numa confissão muda da culpa que sentem, Felipe Neto, ao contrário, vem passando - porque julgamos esse processo sempre em movimento - por um processo de transformações profundas de seu pensamento e postura. E isso é algo bem incomum, convenhamos. É mais fácil aferrarmo-nos em nossas convicções, ainda que já não façam mais sentido. Entretanto, vale destacar de forma provocativa, se tal mudança é provocada pela reflexão nas bases do pensamento ou se as bases de seu pensamento vão mudando ao passo que aqueles que no passado estariam mais próximo das ideias que evocava, passam a atacá-lo? Considero essa provocação uma boa forma de tentar refletir sobre a solidez de sua postura presente e da autenticidade dessa mudança - e não há aqui qualquer tentativa de questioná-la. Isso porque, no testemunho perceber-se-á que os ataques que começa a receber desse extrema-direita que ascende caminham em paralelo aos questionamentos de suas certezas e convicções;
5 - E aqui um ponto de inflexão importante, especialmente para aqueles que caem no simplismo (mesmo simplismo com que o próprio Neto atuava em tempos de Não faz sentido) de atacar Felipe Neto sem uma reflexão mais acurada: por que diabos um influenciador, um Youtuber (palavra usada por alguns de forma pejorativa), incomodou tanto a um projeto de poder como o de Bolsonaro? Inclusive, a ponto de se tornar uma de suas maiores vítimas. Provavelmente não seja exagero dizer que Felipe Neto foi mais perseguido pelo bolsonarismo que muitos nomes do PT, bobear mais que o próprio Lula. Se ainda hoje o bolsonarismo volta-se contra o influenciador, aqui vai uma verdade: vocês transformaram o Felipe Neto nesse algo muito maior, vocês o alçaram a uma relevância inimaginável, isso por uma razão tosca que todo tosco extremista não consegue conviver: com as críticas e com o pensar divergente. E aqui, na confissão do autor, talvez sua epifania pessoal que qualquer democrata de esquerda ou centro já o sabia, mas que os jovens burgueses de uma classe média não eram capazes de imaginar: a esquerda nunca foi risco democrático, aliás, para incômodo de alguns espectros da esquerda, Lula e o PT passam longe de qualquer ideia revolucionária, que dirá do comunismo. Essa comparação surge forte justamente quando o autor mostra como fora tratado na "ditadura do PT", quando falava os mais absurdos contra o governos sem jamais ser cerceado e como, quando a chegada de Bolsonaro no poder, ele passou a conhecer pessoalmente como funciona um projeto autoritário. Ao chamar a atenção da extrema-direita e aos ataques que esta lhe desferiu - e ainda desfere, Felipe Neto passa então a conhecer os esgotos, o poço sem fundo que se criou e que os que sempre mostraram-se lúcidos há algum tempo denunciavam. Esse esgoto, esse poço aberto, um trauma ainda em processo suturado cuja ferida não está cicatrizada e ao menor descuido nas bandagens nos ameaça uma piora, já que ainda mostram-se inflamadas;
6 - Nesse sentido, esse é um dos principais aspectos positivos deste trabalho do autor, que a partir do testemunho pessoal desnuda o uso da máquina governamental e, pior ainda, a tomada dos ideias extremistas do Estado Brasileiro para promover uma perseguição a um único indivíduo por questões políticas. Aliás, isso embora não seja trazido à luz, o leitor mais proficiente perceberá que a perseguição a Felipe Neto não se trata tão somente de uma perseguição governamental, trata-se de uma questão mais ampla e demonstra como esse ideário reacionário infiltrou-se nas estruturas da sociedade como um todo e do Estado, de modo que a perseguição advinda desses esgotos do poder provém não só de orgãos governamentais, mas de um processo mais amplo e concatenando diferentes esferas a sociedade brasileira numa articulação dos ideais fascistas que tomaram uma grande parcela do nosso corpo social em sua incapacidade de conviver com pensamentos divergentes. Felipe Neto não foi - e não é o único - a se tornar vítima desse reacionarismo, mas por suas características é o que nos traz o relato desses tempos tenebrosos, tempos que para além do já dito, encontrou no ambiente digital as condições ideais para se mover em sua tentativa de tomada do poder. Não há como qualquer pessoa que possua o mínimo de lucidez, e que ler este livro, achar a perseguição a Felipe Neto e a forma como ela ocorre algo normal, mera disputa política;
7 - Isso porque a narrativa pessoal de Felipe desnuda a bestialidade, não só a bestialidade organizada e estruturada em salas como a do Gabinete do Ódio, mas também a bestialidade que atiça as mentes amorfas, frustradas e comuns que podem servir de armas a qualquer momento ao projeto autoritário, a mente das massas. E ainda que possamos encontrar exageros ou superlativos na narração pessoal, não se pode minimizar os riscos e as ameaças perpetradas a um cidadão brasileiro simplesmente pela discordância ao que ele pensa. E sequer estou dizendo aqui que precisamos concordar ou achar legal o trabalho do Felipe. Não preciso gostar do que ele faz, mas é fundamental que nos coloquemos contra qualquer tipo de perseguição e ameaças. Isso sem falar do uso político e necropolítico da desinformação, da mentira, da alienação e das inverdades na máquina de ódio construída a serviço do pensamento reacionário. E aqui um dos olhares que julgo de pouco alcance da obra e da visão do Felipe: a sensação que fica com a leitura do livro e pelas descrições dos embates, é a de uma máquina do governo bolsonarista apenas, entretanto, essa máquina, essa das fake news, da desinformação e da mentira, é uma máquina cujas engrenagens atuam antes mesmo da ascensão dessa criatura, aliás, a criatura abjeta, desconfiamos foi escolhida por uma máquina que de todo não veio à tona, uma máquina que principia nas acéfalas jornadas de junho de 2013, que se organiza no submundo na trama do golpe e quase golpe do golpe (a nós muito mais grave que o 8 de janeiro, pois consideramos que a Greve dos Caminhoneiros sim foi o maior risco à democracia ou simulacro de democracia e a tentativa mais próxima de êxito de implementar um plenamente autoritário no país) e atinge seu ápice ao poder, e aí sim podendo usar a máquina governamental com a chegada de Bolsonaro ao poder;
8 - Entretanto, se trouxemos até aqui aspectos positivos dessa narrativa de transformação pessoal que em grande parte é declarada com a abertura do autor à novas leituras e um aprofundamento conceitual, também devemos colocar que no que se refere ao livro temos, ainda que com alguma sustentação teórica, a predominância do impressionismo pessoal. Não se discute aqui a busca de Felipe por conhecimento intelectual e na procura por conhecimento científico, entre outras coisas, entretanto, a narrativa ancorada - e assumidamente pessoal, não é capaz de conferir à obra uma profundidade intelectual maior. São relatos e testemunhos e não encontramos uma reflexão mais complexa no sentido de uma filosofia e uma sociologia que construa uma argumentação sustentada. Percebemos o esforço do autor em sua busca pela informação e pelo foco nos estudos, ainda assim consideramos eles ainda insuficientes quanto ao que se imagina uma tentativa de entendimento de questões bem mais complexas como a teoria das massas e mesmo da comunicação. Sentimos um entendimento ainda restrito de seus conceitos como o da comunicação somados a um problema muito presente nas gerações contemporâneas, como certa incapacidade de um olhar mais longo no retrovisor. No caso do livro do Felipe, entre outros exemplos, ele demonstra uma compreensão ingênua de que a extrema-direita é que entende e compreende o processo da comunicação. Isso é no mínimo ingênuo, tanto esquerda quanto direita há tempos usam da comunicação uma de suas ferramentas de poder; aliás, a esquerda totalitária assim como a direita totalitária, o stalinismo e o nazifascismo respectivamente, mostraram-se senhores da comunicação. Mesmo Lula, o PT e a esquerda brasileira compreendem e sabem muito da comunicação. Pensar numa hegemonia da extrema-direita na comunicação pode causar confusão na leitura da obra, pois esta traz uma concepção redutora da comunicação, como se ela fosse apenas instrumento advindo com a nova tecnologia das redes; entendemos que é a esse modo específico de comunicação que o autor se refere seguidamente como campo de expertise da extrema-direita, o que confere. Contudo comunicação é algo além do universo dos algoritmos;
9 - Além disso, parece-nos carecer de alguma dialética as reflexões do autor. Elas estão ainda muito centradas nesse eu que narra e que por vezes pode nublar uma observação mais ampla. O próprio título, nesse sentido, pode soar ambíguo, já que "como enfrentar o ódio" é mais uma narrativa a expor os métodos e estratégias que o autor precisou montar na resistência a na luta pessoal contra o ódio direcionado a ele, que propriamente uma possibilidade de reflexão filosófica de entender os mecanismos do ódio. Soma-se a isso que há certa ausência de observações importantes na análise desse fenômeno, o ódio, como uma leitura mais ampla acerca das raízes do totalitarismo e das diferentes perspectivas da cultura das massas, o que confere ao livro um forte elemento de militância e panfletarismo. O que queremos dizer é que mesmo diante do esforço do autor em buscar aproximação da intelectualidade (no sentido acadêmico), da ciência e dos estudos mais amplos, mesmo ele trazendo e reverberando um pouco dessa busca, ainda assim sentimos a falta de uma sustentação teórica mais pungente;
10 - Mas, enfim, entre acertos e enganos, Como enfrentar o ódio sustenta-se no fato de que precisamos de relatos destes tempos medonhos por quais passamos e continuamos a passar. Se por um lado dissemos que o livro carece de uma reflexão dialética e de sustentação teórica, por outro, os relatos pessoais do autor desvelam um quadro aterrador que mesmo em sua incompletude, é capaz de demonstrar com assombro o buraco a que fomos jogados. Aliás, reside aí talvez a grande ingenuidade do Felipe: a obra centra-se em Bolsonaro e seu governo, contudo, o abjeto ser é não mais que uma figura que canaliza a doença do corpo social, que potencializa e libera as ameaças e a perseguição, facilitadas, claro, pelas estruturas governamentais do bolsonarismo, mas entranhadas nas nossas mais distintas estruturas sociais, sejam ou não oficiais do governo. Deste modo, Felipe Neto nos mostra sua resistência ao ódio, mas ainda assim carece de entender o quão maior é esse ódio. Justamente por isso, talvez o capítulo mais sensível seja o que ele se pergunta "Vencemos mesmo?" Essa é uma pergunta essencial, afinal, vencer uma eleição significa vencer o ódio? Nisso ele insinua bons caminhos que nos guiam para a atenção. Em suma, temos aqui e em toda narrativa a escrita tanto de relatos de alguém que precisou enfrentar os esgotos abjetos do poder e dos corpos sociais que procuram legitimar esse ideal autoritário, bem como um alerta, um alerta de que há muito ainda pela frente. Por isso, goste você ou não de Felipe Neto, esse livro é um importante registro dos contraditórios processos sociais que é a existência num território cheio de conflitos que chamamos de Brasil.