10 Considerações sobre Uma família feliz ou sobre o horror que dispensa o sobrenatural

O Blog Listas Literárias leu Uma família feliz, de Raphael Montes publicado pela editora Companhia das Letras. Neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro, confira:


1 - É inegável a capacidade de Raphael Montes provocar sensações no leitor de modo a instá-lo sempre num estado de tensão em cenas que revelam-se angustiantes. Tudo isso sem a necessidade de uso de elementos comuns ao gênero do horror, como monstros, fantasmas e toda sorte de criaturas. A bem da verdade, o horror de Raphael Montes é um horror realista, talvez por isso tão tenebroso a ponto de conduzir durante a narrativa o leitor a ápices de ansiedade. Esse é um dos principais aspectos de Uma família feliz, lançado pela Companhia das Letras. Trata-se de uma trama digna dos melhores suspenses - nenhum Ripley é capaz de nos provocar tanto como Eva e Vicente; a todo instante o leitor é chamado a interagir com a narrativa, das piores formas  e sensações possíveis;

2 - Dito isso, devemos considerar inicialmente que, por outro lado, dentre nossas tantas suspeições, o desfecho narrativo revela-se de certo modo até mesmo previsível, especialmente se tomarmos o gênero do suspense e o do horror em consideração. E isso não tem qualquer relação com o fato de o autor iniciar seu romance pelo fim. Na verdade, nossa investigação - a do leitor - será sempre a busca de explicações para o fim que se dá no primeiro capítulo. Ocorre que a explicação para tal desfecho inicial estará sempre no horizonte do leitor, entretanto, um horizonte intercambiante com as tentativas do autor em nos ludibriar no progresso da narrativa por meio de pistas falsas. Alguns de seus despistes apontam para uma ou outra possibilidade, porém, o leitor mais assíduo do gênero terá sempre em sua caixa de suspeições a solução final - que a este leitor será um tanto esperada. No entanto, não consideramos que a grande virtude do livro esteja nesse jogo de esconde-esconde com o leitor quanto a origem dos fatos tenebrosos que são narrados na abertura da narrativa...

3 - Ocorre que Uma família feliz aponta para diferentes abordagens e algumas camadas as quais parecem mascaradas pelos fatos centrais, mas que ao cabo, constituem-se pelo menos a este leitor, como uma das questões centrais a que deveríamos olhar na leitura do livro, ao seu plano de fundo - não tão ao fundo, mas que muito bem descreve os horrores da vida contemporânea;

4 - E não estamos falando aqui de alguma espécie de análise ou crítica social, como se poderia pressupor a centralidade de uma narração que conta a vida de uma aparente e feliz família moradora de um destes tantos condomínios em que a burguesia nacional vive em sua própria bolha de segurança e de verdades. Seria um engano pensar que a obra flerte, nesse sentido, com alguma crítica social, ainda que Eva, a invasora - nem tão invasora assim - não pertença ao mundo perfeito de Vicente e seus vizinhos. A trama embora aborde esse paraíso idílico da classe média brasileira em seus sonhos, que no livro ruirão com a desgraça que passa a viver a família de Vicente e Eva, pouco tem a ver com alguma questão social que se impõe - no sentido financeiro, no caso. Todavia, está justamente na descrição desse espaço onde tudo se dá, talvez a mais tenebrosa das questões presentes no livro;

5 - E nem de perto estamos falando da suspeição relacionada a abuso infantil, tema dos mais sérios, tampouco da alienação parental ou do relacionamento marcado por uma boa dose de toxidade entre Vicente e Eva, ou a estruturação patriarcal da pequena família embrenhada de segredos. O tenebroso, o horror provavelmente também não está na própria explicação dos fatos narrados, esse dentro do esperado. O efeito, parece-nos, está diluído pelas páginas não por meio de um falar de uma sociedade apodrecida, mas o desnudar, o revelar de um corpo social monstruoso e atroz mais maléfico que qualquer demônio;


6 - Isso se torna mais forte a partir da narração confusa e mentalmente perturbada de Eva, narradora do romance. Em meio a lapsos e questionamentos dos mais intensos aos poucos ela vai percebendo o mundo cair em meio à toxicidade e à desconfiança de todos. O nascimento do filho parece trazer mau agouro, confusa, cheia de lapsos de memória seu castelo de perfeição como se soprado pelo Lobo Mau voa como se levado por um tornado que faz sua vida cair em novos pesadelos - resgatando velhos demônios e produzindo novos;

7 - Aliás, por algum tempo enquanto leitor nos colocamos com pé atrás com a autoria. Será mesmo que Eva será tão somente uma exemplar da repetição da Eva mítica a quem se atiram todas as culpas do mundo? Estará ela tão absorta e afundada em sua confusão mental que é a raiz das monstruosidades? É difícil por um bom tempo não desconfiamos que tudo caminha para isso, quando novos despistes e provocações vão sendo lançadas aos leitores, que aí já estão imersos na senilidade de sua narradora que vê o sonho literalmente tornar-se um pesadelo do qual não terá escapatória;

8 - É justamente esse pesadelo que não é realmente um pesadelo, a grande virtude do livro. A descrição da sociedade desnudada por Montes é de uma inteligência. Não há necessidade de o autor ou o narrador dizer o que é essa sociedade, tudo se dá revelado pela ação das personagens ao fundo que constituem o grande horror do livro. Nesse sentido, o romance torna-se uma obra de seu tempo, revelador da decadência moral e desmascarador da hipocrisia existente no Mundo de Pollyana dentro dos muros condominiais. Uma sociedade da inquisição, da sordidez e do ódio gratuito. Quando as torres de marfim da idílica vida de Eva caem, é o comportamento em seu entorno que amplia o horror de uma personagem que mergulha num pesadelo kafkaniano. Com olhos, lentes e dedos apontados para Eva a tensão do romance - que já vinha sempre presente e forte - se avoluma e não passamos somente a questionar a postura de Vicente, mas de toda uma sociedade fingida que na primeira oportunidade esgarça qualquer preceito moral e passa a agir com comportamentos medievais, um medievalismo wifi em que no lugar da praça e dos tomates e ovos - ainda que Eva os venha a conhecer - se  construirá em likes, dislikes e postagens e virais;

9 - Com isso Montes entrega-nos duas realidades em que o horror dispensa monstros, fantasmas e qualquer que seja a criatura sobrenatural. O horror revela-se assustadoramente realista em qual das camadas olhemos. Na explicação dos fatos, não menos tenebrosos, como no espaço e na estrutura social em que corre a narrativa. É de uma angústia e de uma tensão acompanhar Eva; e tudo piora quando o social libera todas as monstruosidades do indivíduo numa inquisição feroz, animalesca que torna Eva ou qualquer ser humano um pária existencial. O mais assustador é que a base realista do romance então avoluma o impacto que provoca no leitor porque os acontecimentos no Blue Paradise podem ser observados fora da ficção a ponto de nos perguntarmos como chegamos a esse ponto?

10 - Enfim, Uma família feliz é antítese. Na verdade é uma tentativa de denunciar e revelar essa antítese, esse mundo idealizado como se fosse um comercial de margarina ou ainda uma película feliz da década de 50. Esse jogo entre o que está na superfície e o que está no profundo torna o livro uma das mais tensas leituras e isso é declaração de sua qualidade. Se no primeiro plano da explicação do suspense temos um desfecho que traz alguma previsibilidade, o segundo plano da narrativa, aquele que revela os horrores de uma sociedade contemporânea feita de bolhas hipócritas, mas felizes em seu ódio, em suas mentiras e segredos, sempre pronta a inquerir, linchar e apagar a existência de qualquer um que lhe seja o outro é a grande porrada que a leitura nos entrega. Aliás, nesse mundo em que afundamos no abismo, não duvide, nesse sentido, qualquer um de nós poderá ser Eva de uma hora para outra. Raphael Montes mostra-nos que a vida azul da burguesia também guarda seus horrores é é capaz de descer às baixezas de um mundo imundo.

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