10 Considerações sobre História do Doutor Johann Fausto, ou sobre o começo de tudo

O Blog Listas Literárias leu História do Doutor Johann Fausto (anônimo Sec. XVI) publicado pela editora Filocalia com tradução, notas e ensaio de Magali Moura. Neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro, ou o começo de tudo, confira:


1 - O mito de Fausto é um dos mais longevos e persistentes na cultura - especialmente ocidental, a tal ponto de ser compreendido como uma metáfora do homem moderno. Diferentemente da maioria dos mitos, este tem por trás da história, inclusive, a existência de uma figura histórica, que para alguns seria uma das origens e inspirações sobre a história de um tal de Doutor Fausto. Nesse conjunto de histórias, certamente a primeira publicação de relevância e que deu corpo ao mito e constitui-se fonte de obra futuras este História do Doutor Johann Fausto editado por Johann Spies em 1587; desde então o mito e o pacto fáustico percorrem diferentes caminhos nas artes e na cultura. `É este livro que foi traduzido por Magali Moura;

2 - Na presente edição temos um grande trabalho de pesquisa (que contou com o apoio de órgãos de fomento como a FAPERJ e a CAPES) em que Magali Moura não apenas traduz a história publicada por Spies, bem como traz ao longo do texto numerosas notas que não apenas comentam a obra em si, mas trazem diferentes olhares, pesquisas e estudos sobre o mito, além do ensaio que acompanha a edição;

3 - Para Magali Moura este livro retrata o princípio em que o mito que percorria de boca em boca se torna objeto das letras, a partir de 1587. No ensaio que traz junto à obra, "A história do Doutor Johann Fausto ou a história de uma modernidade condenada" a autor nos carrega por uma longa jornada acerca do nascimento e solidificação do mito na cultura. Para Moura "as narrativas, dramas, poemas, filmes, músicas, balés sobre a saga fáustica transformaram-se ao longo dos séculos de sua permanência no imaginário ocidental , como um testemunho vivo do poder da palavra que, em constante diálogo com seu tempo, acompanha de perto as nuances do complexo mundo da modernidade que, segundo esta narrativa, já nasce condenado, assim como a história dos homens expulsos do paraíso. O Homem e suas complexidades parecem não querer sair da cena fáustica e ainda há muito a se dizer";

4 - Mas feitas essas breves introduções, partimos ao livro. O que nos conta esta, uma das primevas narrativas fáusticas? História abre com dois momentos importantes, a dedicatória de Spies em que diz "por toda a Alemanha, já há um bom número de anos, se continua a falar da extraordinária e popular lenda do doutor Johann Fausto, das mais variadas aventuras do mui famoso magro e nigromante" em que alude à figura histórica de Fausto além de demonstrar que tais histórias circulavam na cultura popular;

5 - A segunda entrada importante é o prefácio ao leitor cristão, que deixa ainda mais nítido o caráter evangelizador da História publicada por Spies, vista geralmente sob a ótica de sua relação com as ideias e a política protestante servindo como uma narrativa pedagógica das ideias protestantistas. O caráter educador e moralista no prefácio fica evidente "piedosos cristãos, entretanto, saberão se proteger de tais tentações e perturbações do Diabo e, por meio desta história, refletirão sobre a advertência como se encontra em Tiago...";

5 - Trata-se de fato de uma narrativa de advertência, uma fábula moralizante que tem como objetivo alertar aos cristãos não apenas as tentações do Diabo, bem como, das consequências e dos perigos que hão ao pactuar com o Coisa Ruim. O desfecho de História é visto como exemplo de condenação do homem ambicioso dos prazeres da vida, do conhecimento, etc...  (aliás, refletiremos sobre esse desfecho). Importante salientar quem em suas notas e em seu ensaio Magali Moura reconstitui a relevância dessa História inicial para além de seu caráter moralizante. Esse Fausto eclipsado pela potência de seus sucessores na afirmação do mito, conforme ela defende já traz essa concepção do humano condenado em sua modernidade, pois é para ela ocorre nessa transição entre o medievo e a modernidade, e o Fausto de Spies já antevia essa condenação;

6 - Mas voltando ao livro, ele está dividido em três partes: História do doutor Johann Fausto; Sobre as aventuras de Fausto e outras questões; Do que ele fez e praticou com sua nigromancia na corte de diversos soberanos. Por fim sobre seu final pavoroso e pleno de lamentos e sua despedida. Em síntese essas três partes narram as aventuras de Johann Fausto que desejoso de conhecer todas as artes mágicas procuram ao demônio para pactuar. Assim, por meio do espírito de Mefostófiles, Fausto entrega sua alma ao Diabo pelo contrato de 24 anos, contrato este que é ratificado uma segunda vez. Em contrapartida ele tem acesso pelas artimanhas do espírito à fortuna, conhecimento, a momentos de vida epicurista e participa de toda sorte de aventuras e embustes até a última parte carregada de alguns lamentos e um desfecho ao corpo - matéria - que pretende-se castigo em virtude de seu pacto e abandono à Deus;

7 - É justamente o castigo final que para muitos pesquisadores reforça a teoria da narrativa como apologista da lógica protestante ( Muitas notas de Magali Moura tratarão disso e aproximarão partes da narrativa à citações de Lutero). O livro é escrito sob forma de alerta, como exemplo de que a audácia e a curiosidade deverão ser punidas. Aliás, a visão trazida da Igreja Católica, especialmente dos papas reforça o caráter ideólogo protestante da narrativa;  

8 - Ápice do castigo ao pacto feito, em seus momentos o protagonista diz: "morro agora como um mau e um bom cristão: como um bom cristão por sentir um sincero arrependimento e sempre pedir do fundo do coração por perdão; a fim de que minha alma possa ser salva; como um mau cristão, porque sei que o Diabo levará meu corpo, e o deixarei com gosto fazer, contanto que deixe então a alma em paz" discursa por meio da dubiedade Fausto à plateia de estudantes seus amigos. Discurso que amplia a admiração dos espectadores que "admiraram-se sobremaneira ao ver que ele fora tão audacioso a ponto de haver posto em perigo corpo e alma, apenas pela vontade de fazer patifarias, pela pretensa curiosidade e pelo apreço pela magia (vale ressaltar que à época termos e magia e ciência muitas vezes se misturavam)". Pensamos que aí, inclusive, reside uma das belas ambiguidades da narrativa;

9 - Se por um lado a danação última de Fausto vem de forma tenebrosa e trágica precedida de seus lamentos pela danação, por outro lado o que distingue o castigo de Fausto aos demais seres humanos? Não teremos acesso à eternidade de Fausto e sua estadia no inferno, estadia que em muitas partes surge com alguma proteção no pacto, especialmente no segundo contrato. Oras, não é de se admirar o encanto que provoca na platéia de estudantes, o homem á frente deles vivera uma vida de aventuras, de descobertas, jornadas alucinantes e alucinógenas; e ali estava a seu modo firme na iminência de pagar o preço pelo seu arroubo e arrojamento. Um preço a ser pago por seu corpo, pela matéria. Se isto, como talvez imaginavam seus ideólogos, tentativa de instruir pelo medo do castigo, a lógica cristã protestante tinha como objetivo afastar seus compares da curiosidade extrema, dos desejos, por outro não estaria ali a raiz de uma transformação que reverte o símbolo. De figura pedagógica do mau exemplo, da heterodoxia, do afastamento de Deus, não seria esta última passagem justamente aquela que implanta em sua plateia - tanto em seus espectadores quanto seus leitores - a transformação de um castigado, de um criminoso na figura de um herói tal como imaginam ali os estudantes que testemunham as últimas horas de Fausto? Sim, afinal, temos de considerar que o desfecho tenebroso do corpo de Fausto é o preço que ele paga pelo conhecimento e pela vida pautada por inquietações, é verdade, mas carregada de descobertas. O desfecho do corpo é comum a todos nós, sendo mais ou menos trágico. Não veriam nisso almas dispostas ao conhecer, às jornadas ao desconhecido, imaginar que tal preço seria de se pensar? Ademais, não seria de todo errado pensar no preço de Fausto espécie de sacrifício - e não castigo? Seria este seu sacrifício em nome de tudo aquilo que procurava? Parece-nos que a ambiguidade ganha força nesses dois pólos tão antigos, os com gentes cheias de medos e que a ideia de qualquer castigo lhes segura como mansos gatinhos e as gentes que vêem nos sacrifícios uma jornada heroica ao passo que isso lhes inculta a pagar qualquer preço... em ambos os casos teremos sempre gentes mui perigosas, bem verdade, mas isso é outras questão;

10 - Enfim, logicamente que precisamos ler esse História com muitas lentes. É um túnel pelo seu tempo de modo que, obviamente, algumas questões ou elementos são específicos do olhar de alguém do século XVI. Aliás, seu momento histórico é responsável pela presença tão forte não só do misticismo como das questões mágicas que certamente povoavam o imaginário temporal. Por isso História é uma narrativa fantástica que em alguns pontos ver-se-ia inverossímil. Trata-se de uma narrativa fantástica - certamente não concebida de tal forma. Justamente por isso, para além de sua leitura na constituição do tecido fáustico é uma leitura divertidíssima carregada de signos, simbologias e metáforas. Todavia, feitos os apartes de seu contexto, ainda que escrita há muito tempo, a estrutura básica do mito ali está, de modo que podemos lê-la também com os olhos desse nosso presente onde Fausto permanece vivo e influenciando a cultura, seja popular, seja erudita.

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