O Blog Listas Literárias leu Não se começa um incêndio sem uma faísca, de Zeka Sixx publicado pela editora Penalux. Neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro, confira:
1 - Não, talvez não seja justo o complemento sexo, drogas e rock 'n roll levado ao título deste post, mas fazer o quê? são elementos essenciais na construção de Zeka Sixx ao longo de sua trilogia começada com A era de ouro do pornô. Tivemos a grande honra de ler os três trabalhos do autor e neste trabalho que envolve de certa forma um mesmo universo, talvez o mais interessante e maduro deles, um retrato agridoce de uma cultura marcada por um hedonismo radical, o olhar para determinada bolha em que a vivência radical das sensações é levada ao grau máximo por suas personagens que ao mesmo passo parecem viver sem limites, ao fundo procuram por algum sentido...
2 - Aliás, abrindo aqui um parenteses, é notável o talento do autor e a relevância de seu trabalho iniciado com o livro citado acima. Ainda que o primeiro ainda fosse um embrião muito bem elaborado, o segundo já melhorado em muito e esse último de grandes recursos literários, são três obras lançadas por distintas e pequenas editoras o que não deixa de ser uma denúncia do nosso mercado editorial de maior porte ainda incapaz de absorver todas as publicações relevantes, caso desse livro. Nas três leituras nossa temos, claro, boas edições, mas sem exagero, especialmente esse último livro, bem poderia figurar o catálogo de uma Companhia das Letras ou de uma Record, contudo Zeka segue em sua resistência publicando em pequenos espaços, para sorte de quem pode lê-lo;
3 - Feita a pequena digressão, em Não se começa um incêndio sem uma faísca, o autor segue sua jornada pela cultura da noite porto-alegrense retomando personagens e lembranças de sua primeira narrativa, A era de ouro do pornô. Neste novo livro a narração é compartilhada por Vic, um arquiteto e sua crise de meia-idade e o "furacão" literário Bianca Rossi. Vale destacar que embora com personagens e lembranças - algumas como a de Max Califórnia - não impedem a leitura individual do romance, pelo contrário inclusive;
4 - Além das lembranças a outros personagens já conhecidos por leitores de Zeka Sixx, a narrativa para além das suas tensões, do uso irrestrito de drogas, das referências culturais que tratamos adiante, o romance tem como pano de fundo um Brasil visto sob o espectro da melancolia de um espectador que assiste a uma espécie de guerra de facções na luta pelo poder. Ocorre que os tempos recentes nesse país, caso das eleições de 2018 e 2022 ganham certa visibilidade na voz de seu narrador e narrador, destacando nessa avaliação que talvez Vic tenha um dos olhares mais lúcidos para os acontecimentos políticos do país, a despeito de sua volatilidade. Isso porque talvez, diferentemente de muitos analistas políticos que vimos, seu olhar está mais calcado na realidade empírica dos comportamentos eleitorais dos brasileiros, inclusive com sua ideia de eleitores wave cujas escolhas têm colocado o país aqui e acolá alternando o peso das balanças;
5 - Mas não se trata de uma narrativa política, embora, haja no romance um bocado dela - que aliás, cujo olhar pode desagradar gregos e troianos travestidos em militância acrítica. O romance está mais para algo intimista de uma cultura burguesa marcada pelo excesso e pela radicalização das experiências. Não, não dá para dizer que Sixx não reverbera um olhar para os comportamentos burgueses de uma juventude de classe média que chegou à meia-idade, caso de Vic. Seus personagens são habitantes dessa cultura que rega as noites de Porto Alegre com música, drogas e sexo, claro, porque o que não falte em seus romances é sexo, sexo levado aos limitas das perversões humanas, escolhas que geralmente caracterizam a busca dramática por algum sentido para a existência. São, a seu modo, obras essencialistas, o trabalho de Zeka Sixx...
6 - E no caso desse seu romance mais recente, parece-nos que as personagens ganham em tons de complexidade e mesmo a desenvoltura e o tecimento da narração se encontram na melhor forma do autor, mesmo que ao final nos brinde com algo já um tanto clichê da literatura brasileira, os finais cíclicos em que o fim é o começo. Mas enfim, isso não atrapalha a força das personagens e na narrativa enquanto procura voraz pelas experiências humanas, muitas vezes encharcadas pelo artificialismo aqui representado nas carreiras e mais carreiras de pó e tantas outras drogas que aos personagens criam o mesmo hábito de que tomar água;
7 - Além disso, precisamos destacar aqui ainda outra característica que mostra-se excelente na produção do autor. Bakhtin, o famoso linguista, nos legou a ideia de polifonia, demonstrando como somos permeados e construídos em nossas relações por tantas outras vozes. A leitura de Sixx é um intenso e valoroso mergulho no universo dos intertextos, suas personagens marcadas por uma polifonia capaz de legar-lhes suas próprias identidades nos levam a diferentes décadas, nesse romance 80 e 90, um percorrer pelas mais distintas referências culturais que formam suas personagens;
8 - Todavia, deve-se destacar a presença da cena musical na construção desta obra polifônica. Ler o livro não se trata apenas uma experiência de leitura, pois as referências musicais nos propiciam hiperlinks para um bom número de músicas que não apenas constituem personagens, mas que sem dúvida alguma, podem dialogar com a própria experiência dos leitores, no caso daqueles que partilham idades semelhantes aos personagens, tudo pode ainda ser revestido por alguma dose de nostalgia. Não se começa um incêndio sem uma faísca é uma obra polifônica e no que se refere às canções, de um bom gosto, diga-se;
9 - Dito tudo isso, temos, portanto, uma leitura que nos atira a uma cena - noturna em sua grande parte - que trata do vazio expresso pela radicalidade das experiências individuais que revelam o egocentrismo de nossos últimos tempos. Há algo de fútil em suas personagens que vagam por um mundo que lhes é particular, sem amarras e sem freios de uma cultura urbana e burguesa. Aliás, não vimos isso como problema na obra, pois que cabe a cada autor voltar seu periscópio para aquilo que deseja desnudar. Sixx fala de um mundo que lhe é palpável e ao desnudá-lo liberta ao leitor para que tire suas próprias conclusões, de modo que há boa dose de crítica em como descreve as cenas "captadas" por seu periscópio. A bolha que narra em suas cenas, ao fim, faz parte das tantas bolhas que nos constituem enquanto sociedade e a radicalização do olhar mostra algumas das intenções do autor, cremos;
10 - Enfim, Não se começa um incêndio sem uma faísca, para além do ótimo título que carrega - tão rico de referências - é uma leitura que não se resume ao sexo, drogas e rock 'n roll usados lá no título. Personagens complexos e situações drásticas e aquele olhar melancólico que reforça o título da narrativa que o precede, tudo o que poderíamos ter sido. Ao cabo, parece-nos que os romances de Zeka Sixx reforçam a frustração de uma geração cujo abismo resultou em todos os anos recentes. Sixx ressalta a falência da utopia verde-amarela, das ilusões que nos foram os anos noventa, final dos oitenta. É uma morte sem matar a esperança, uma resignação tristonha anestesiada pelo hedonismo radicalizado daqueles que podem buscar pela fuga de todo o resto. Ou seja, mais que recomendável, trata-se de leitura significativa e significante de nossos estranhos e melancólicos tempos.