10 Considerações sobre Nós somos a cidade, de N. K. Jemisin ou sobre persourbanificação das metrópoles

 O Blog Listas Literárias leu Nós somos as cidade, de N. K. Jemisin publicado pela editora Suma; neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro, confira:


1 - Nós somos a cidade é uma fantasia urbana de alto impacto visual, o que, obviamente, faz sentido não apenas por sua ambientação, mas como pelos focos narrativos pelos quais percorre a fantasia de Jemisin e sua leitura e interpretação da megalópole urbana provavelmente mais tratada e retratada pelas artes narrativas, escritas, mas especialmente as visuais como o cinema. A bem da verdade é a tentativa de construção e análise de Nova Iorque por meio de imagens fantásticas carregadas de influências e intertextos, dos culturais aos teóricos;

2 - Trata-se de um livro contemporâneo e por isso com os desafios que o presente momento impõe ao mundo. Da ascensão fascista pelo mundo democrático e a guerra cultural travada entre progressistas e primitivos talibãs disfarçados de liberais capitalistas, mas que no fundo, arautos do regresso, a dificuldade de diálogo existente mesmo entre aqueles que aparentemente travam a batalha de um mesmo lado. Os avatares e personagens da obra emulam esta sociedade em que sua fragmentação e complexidade é tamanha que o diálogo parece-nos cada vez mais impossível;

3 - Tais complexidades e fragmentações são trazidas por meio de teorias que não apenas parecem moldar a narrativa, como a estruturam e dão corpo a suas personagens. A teoria tanto implícita como deliberadamente explícita como a teoria dos fluidos tão cara a um feminismo profundo enquanto discussões acadêmicas. Aliás, a pauta identitária e as teorias que subjazem a esta discussão demarcam a narrativa, e isto tanto lhe dá força quanto lhe transforma em vidraça em tempos de radicalização ideológica. Todavia, tentar compreender se a obra sucumbe ao panfleto ou de fato constitui-se em algo mais amplo que isso é questão mais complexa que simplesmente aderir a este ou àquele discurso;

4 - Se as teorias identitárias e sociais forma raízes desta narrativa, o mesmo ocorre com as influências e intertextos culturais. Lovecraft, especialmente, é discutido de forma crítica pelas personagens da narrativa, ainda que ao cabo, o romance parta justamente para uma espécie de atualização lovecraftiana deixando a cidade ficcional de lado para tratar mesmo de Nova Iorque sem o subterfúgio da analogia. Para além disso, podemos observar ainda que a trama em sua fantasia pisa pelo horror e pelas coisas estranhas deste gênero. Em certo grau é ainda uma espécie de Stranger Things rodado na metrópole e não num buraco escondido como Hawkins;


5 - Aliás, embora cogite multiversos, a narrativa é fortemente marcada pela bidimensionalidade do lado de cá e do lado de lá. Nova Iorque é vista por suas protagonistas em duas dimensões que perigosamente se mesclam aos olhos de poucos, e cujas gavinhas e tentáculos representam a possível queda de Big Apple. Nesse sentido, invertendo-se as cores, mais uma vez podemos contrastar a narrativa com Stranger Things, o que pode ser visto pelos dois gumes da faca;

6 - Mas retomando a narrativa em si, ela parte da premissa que as cidades, depois de algum tempo "nascem" por meio da personificação de avatares que acabam sendo a representação de todas as identidades. Aliás, aí caber-nos-ia a pergunta se de fato seria possível concentrar tanta heterogeneidade em uma única figura - ou pelo menos poucas figuras? No fundo é o que ocorre no romance, as cidades nascem de uma forma discutível, aliás, pelas identidades daqueles o qual sua autoria considera como reais representantes da cidade. A escolha não deixa de ser problemática, mesmo que no caso de Nós somos a cidade Jemisin tente equilibrar com a persourbanificação dos distritos novaiorquinos. Cada qual com suas identidades majoritárias de acordo com a autoria, cujas identidades constituem tentativas de traçar o perfil da megalópole;

7 - Mas tudo em funcionamento pareceu-me no mínimo problemático. A cisão da possibilidade do diálogo, a este leitor, pelo menos, é sempre uma questão sensível. Suavizados por cenas de tirar o fôlego, por descrições imagéticas a possibilitar blockbuster carregados de efeitos especiais, a narrativa por meio de seus avatares que precisam salvar a cidade mantém algo que parece-me impossibilitar avanços: a prisão às bolhas. Não duvido esta ter sido uma impressão não destituída de erros e enganos, mas persiste no heroísmo protagonista da narrativa a visão-bolha. Claramente uma narrativa marcada pela pauta - justa e necessária - os caminhos percorridos parecem reproduzir os mesmos enganos daqui de fora de modo que luta-se com armas semelhantes as de quem se ataca. Isso torna a batalha um tanto mais longe do bom desfecho;

8 - Ademais há um viés extremamente naturalista que acaba sendo naturalizado pela narrativa. As personagens tratam Nova Iorque enquanto selva, enquanto disputa dos mais fortes, e de certo modo os avatares e grupos ali representados procuram tão somente inverter tais forças, jogar com as regras de um jogo já vistas como injustas. Há uma diferença em pormos a sociedade naturalista em debate e rejeitá-la criticamente e observar esse naturalismo e considerá-lo natural ao passo de constituirmos protagonistas que em maior ou menor grau assumem a postura de feras no meio de uma escaramuça sem fim;

9 - Temos então uma narrativa que equilibra-se entre a justiça de sua discussão e sua temática e certas contradições que parecem saltar aos olhos se nos determos com certa crítica. Tudo isso numa jornada deveras criativa e intensamente imagética. Fantasia com profundidade teórica que vai além das imagens fantásticas de suas cenas. Um romance que procura captar essa cidade que não apenas permeia o imaginário como é também combustível deste imaginário. Aliás, justamente pela relevância desta metrópole soa com certa incongruência ser ela um avatar tardio se comparado a outras cidades que teriam de algum modo já constituído identidade, nascido. Com certa justiça se partíssemos do conceito da narrativa, Nova Iorque talvez esteja uns quatro décadas em atraso, pelo menos... e pensar que a cidade só agora constituiria-se em um avatar, no presente contexto, não deixa de também ser simbólico destes tempos extremos que têm alguma dificuldade para olhar para trás... (ainda que em alguns flashes a narrativa relembre episódios passados da história citadina);

10 - Enfim, Nós somos a cidade é uma fantasia carregada de bandeiras por quais pretende lutar. Leva esta luta ao campo da fantasia e da arte, o que, diga-se, é bastante novaiorquino. Com uma cultura heterogênea, fragmentada por vezes, mas extremamente colorida e múltipla, Jemisin coloca-se em um dos campos da guerra cultural e faz pela narrativa defesa de sua teoria. Uma obra com intenções para além do entretenimento, mas que o é também isso. Leitura carregada de imagens e debate político.

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