O Blog Listas Literárias leu Treinado para matar, de Antonio Veciana com Carlos Harrison publicado pela editora Seoman; neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro, confira:
1 - No prefácio do livro narrando a jornada anticastrista de Veciana escrito juntamente com o renomado jornalista Carlos Harrison, David Talbot diz que o livro deve ser "lido por todos os que cogitam ou se preocupam quanto às incessantes aventuras imperialistas em que os Estados Unidos se envolvem, e como estas têm minado tragicamente a nossa democracia". Faz muito sentido tal alerta, pois que a narrativa em que Veciana rememora sua relação com Tio Sam enquanto tenta dar cabo de Fidel deveria, em tese, ser um alerta, pois ainda que carregue aqueles ares dos programas sensacionalistas que estimulam as conspirações, em ser o relato de alguém de dentro desse submundo, as estruturas e instituições americanas como a Cia - mais recentemente não esqueçamos a NSA - estão mais para Gestapos totalitárias que um instituição democrática; numa democracia real, a CIA e outras da sua laia, não deveriam existir;
2 - Tão essencial quanto a fala acima, também a da lembrança que este também é um livro da história de um fracasso. A expressão parece-nos cara ao ex-espião (falecido em 2020) pelas repetidas vezes que usa o texto de Che Guevara em seu diário sobre suas jornadas no continente africano. A frase soa para Veciana a confirmação de sua tese sobre Che, um fracasso. Veciana, e não que seja nesse sentido, talvez desconhecesse algumas problematizações possíveis da expressão fracasso, principalmente se tomarmos pensamentos da Escola de Frankfurt. Mas deixando isso de lado, retomando a questão do fracasso em seu sentido lato, poderíamos dizer que a história de Veciana é também a narrativa de um fracasso, pois que a despeito de toda sua tentativa de depor ou dar cabo de Fidel, hoje sabemos as conclusões;
3 - Porque o livro em grande parte trata disso, das tantas vezes em que as conspirações e os planos de Veciana não foram ao sucesso na tentativa de matar Fidel Castro. Mas para além desse "fracasso", a obra remonta peças de um quebra-cabeça que aborda um dos períodos mais estranhos e nebulosos da história humana. Um período que talvez nunca tenha cessado, mas que suas faces visíveis nos levam aos anos 60 e 70, a um pós-guerra temeroso de uma nova guerra, mas colocando em marcha novos tipos de guerras, não menos violentos, mas cujos crimes jamais são julgados, em grande parte nunca descobertos;
4 - E a grande perversidade denunciada pelo livro não está naquilo que explicitamente está escrito. Está sim nas estruturas e nas instituições que se ligam, financiam e compreendem a política enquanto arte dos cadáveres. A perversidade está naquilo que nos é contado com a normalidade do que parece soar normal para muitos, as relações da "democracia" americana por meio de suas instituições estatais que rasgam a autonomia dos povos, que imperialistas que são, financiam, fomentam, organizam, conduzem golpes mundo a fora treinando, pagando e pondo em movimento homens como Veciana, homens como outro de suas crias, Osama Bin Laden. Não à toa o próprio Veciana não vê problema algum em ser rotulado como terrorista;
5 - O livro é a versão do próprio Antonio Veciana de sua relação com a história. E esta foi uma relação bastante íntima. Ele esteve nos principais vórtices da história nas décadas já citadas. Mais que uma testemunha dessa história, dela foi também agente estando envolvido não apenas no problema cubano e sua oposição a Castro, mas também com problemas do restante do continente, das mãos norte-americanas sobre seus vizinhos e da própria história norte-americana a partir dos indícios que traz a respeito de uma das mortes políticas mais controversas e "misteriosa" da história recente, a de John Kennedy;
6 - Aliás, aqui é preciso fazer certa inflexão quanto a isto, o testemunho pessoal. Não se trata aqui de uma peça literária, mas a literatura nos ensina que a voz do narrador em primeira pessoa é marcada pela suspeição. Nesse tipo de publicação, creio, essa é uma lembrança que serve. É preciso considerar que temos no livro o olhar pessoal do autor que parte de sua interpretação pessoal dos rumos da história enquanto a vive e por ela também é engolido. Nesse sentido, levando isso em consideração, como temos de considerar e refletir pelo que traz no livro, precisamos também, de maneira sadia levantar perguntas quanto a posição do autor diante aquilo que narra;
7 - Realizada tal inflexão, podemos observar que em grande parte, o livro busca legitimar o caminho escolhido por Veciana. É uma tentativa, talvez, de acerto consigo mesmo, tentando avaliar ao cabo já de uma vida longa transcorrida, a validade de suas escolhas. Escolhas por certo difíceis, escolhas marcadas por certa obsessão, um Capitão Ahab em busca de sua baleia, uma baleia que permaneceu no poder a salvo dos arpões disparados por Veciana;
8 - Nesse acerto de contas que o autor faz consigo desnovela teias intricadas das mais pútridas relações do poder. Em suas histórias surpreende menos sua contestação ao poder ditatorial de Castro que o modo como a política americana coopta sua indignação para torná-lo peça de um jogo dos tronos em que conceitos e valores éticos não mais existem. Essa é a ideologia da CIA e consequentemente da "democracia" norte-americana. Nessa cooptação, seus relatos dos contatos feitos com a CIA, especialmente com David Atlee Philips, um dos personagens do século XX ainda encoberto por uma névoa de mistérios. Nos relatos de Veciana, não só sua caça fracassada a Castro mas ligação entre Phillips e Lee Oswald, assassino de Kennedy, cuja morte suscita ainda teses e teses conspiratórias;
9 - Mas nada mais alarmante nesta obra que a postura da "democracia" norte-americana. O Brasil, bem sabemos, vítima destas mãos titereiras e golpistas que colocam seus dólares acima dos direitos de todas as outras nações. Veciana, curiosamente um anti-esquerdista de carteirinha, capitalista de quatro costados só confirma o grito das esquerdas latino-americanas contra o imperialismo do Tio Sam. Aliás, é curioso como o próprio autor considere ter fugido a uma "democracia" de liberdades se quando, já não mais de interesse aos seus contatos e à CIA, pelos norte-americanos foi tratado da mesma forma com que Castro dispensava a seus opositores. Qual a diferença da águia para o charuto?
10 - Enfim, Treinado para matar, ainda que nos atire a um mar de possibilidades conspiracionistas e que tenhamos de trabalhar algumas de suas abordagens, é leitura que deveria causar impacto. Deveria, pelo menos. Na narrativa estão atitudes e comportamentos que deveriam nos escandalizar, comportamentos que não deveriam ser mais que alucinações ficcionais de um filme do Liam Neeson. O fato que testemunhos como o de Veciana ainda passam despercebidos, que diligentemente ficam às sombras de qualquer debate revela o quão o poder e o sistema é esforçado em não ruir nunca.