No post de hoje conversamos com a escritora Sandra Godinho, que dentre outras obras publicou o excelente Orelha lavada, infância roubada. Confira nesta matéria questões acerca de literatura, infância e sociedade:
1 - Em nossa leitura falamos que a expressão "roubada" no título poderia ser alterada para "assassinada". O assassinato de nossas infâncias - mas não todas as infâncias - é o tenebroso quadro de uma nação que se suicida?
S.G.: É um modo correto de colocar o tema do livro, que remete a uma reflexão imprescindível sobre o nosso futuro e nossa conivência com essa realidade que perdura intocada, um legado demeritório de décadas herdado de nossa elite egoísta. Infâncias são violadas pela falta e pela carência (por certo), especialmente quem não tem acesso a uma boa educação. Mas infâncias também são violadas pelo excesso, para quem não foi dado limites, bons valores e uma justa compreensão do mundo em que se vive. Pais lenientes criam pequenos tiranos e o ditado “não faça ao outro aquilo que não quer que façam a você” nunca foi tão válido. Nas classes sociais mais favorecidas, é comum observar crianças voltadas para si mesmas, como se o mundo delas se restringisse ao próprio umbigo, sem se importarem com os outros à volta. Os pais que educam seus filhos para serem o centro do mundo, sem a consciência de que aquilo que afeta o outro pode acabar afetando você de volta é tão culpado quanto um pai ausente que abandona sua cria. O novo Coronavírus está aí para provar o que digo. Não dá para proteger a si mesmo quando ao menos favorecido não é dada a possibilidade de comprar álcool-gel, ou acesso à água limpa para lavar as mãos. É uma equação que não fecha, especialmente sem a consciência devida do mundo em que se vive.
2 - Aliás, seu livro é tanto um alerta quanto uma denúncia. Como observa essa questão, e também sobre esse papel da [sua] literatura?
S.G.: A literatura é entretenimento, mas também resistência, um modo de criar empatia para com o sofrimento alheio, um modo de sensibilizar pessoas e fazer enxergar realidades que insistimos em não ver, um modo de colocar nossa percepção em alerta. Confesso que não sou fruto da literatura propriamente dita, apesar de sempre ter gostado de ler e escrever. Minha formação é basicamente em Estudos da Linguagem, mas ao entrevistar migrantes para minha dissertação de mestrado eu me despertei para os problemas dos invisíveis, das injustiças, das opressões. Logo depois, tive a sorte de ler “Todos os abismos convidam para um mergulho” de Cínthia Kriemler, então tudo se encaixou e passou a fazer sentido, ou melhor, tudo ganhou um sentido extra e extraordinário.
3 - Falamos em nossa resenha do contraste das brincadeiras que nomeiam capítulos com as infâncias neles retratadas. Isso nos causa forte efeito. Como você analisa este contraste e sua força na reflexão dos leitores?
S.G.: Foi a aposta que fiz na desconstrução daquilo que sempre foi tido como inocente, com o objetivo de chamar atenção ao texto. As cantigas pueris que nossos pais nos ensinaram ao longo da infância, acabaram impregnadas no texto com esse chamamento que nos causa estranheza, apavorando muitas vezes. Quem não se espantaria com: O pai brigou com a filha/debaixo de uma sacada/ o pai saiu ferido/ e a filha despedaçada. Ou com: Escravos do pá/vivem como sabiá/ tira, põe, deixa o Marcelino roubar/guerreiros com guerreiros fazem zigue-zigue-zá/ guerreiros com guerreiros se fodem ao deus-dará./ A intenção foi resgatar o leitor do amortecimento cotidiano em que vive, acordar alguém da clausura insensível com um estranhamento sutil colocado à frente sob a fingida aura de inocência. Acho que funcionou.
4 - O estilo, por sinal, mostra como você trabalha através da estética, atravessando seu texto de tal forma por ela, que faz todo o potencial do que é narrado ganhar ainda mais força. A estética para a literatura é como o sal para um bom prato?
S.G.: Sem dúvida. Eu não quis reinventar a roda. Tivemos ao longo do tempo grandes autores de poesia concreta e de textos experimentais, então quis – e quero – tirar proveito disso, do que outros já realizaram tão bem em suas caminhadas literárias. Um livro começa a chamar a atenção do leitor pela capa, pelas cores, pelas imagens. Somos seres altamente visuais e aposto nisso para atrair a curiosidade do leitor para meu texto, especialmente num universo de excelentes talentos e textos.
5 - Também falamos das tantas vozes presente em seu texto. Para além daquelas ressaltadas como as populares cantigas, as brincadeiras, os jogos, como você trabalhou na montagem deste mosaico dialógico?
S.G.: O processo criativo de um livro não é o mesmo e muda de obra em obra. Ao menos para mim, assim é. Eu participo do blog As Contistas, ao lado de outras grandes autoras. Vez por outra, o blog propõe desafios literários aos membros como forma de exercício e de ode à criação literária. Eu havia escrito um dos contos, “Jogo de Damas”, para o blog. Depois, Bianca Machado nos propôs uma antologia em que cada autora deveria contribuir com um conto, então escrevi “Jogo dos sete erros”. As histórias foram escritas assim, de forma espaçada, ao mesmo tempo em que lia o livro da Cínthia, que me influenciou grandemente. Li também “Receita para se fazer um monstro”, de Mário Rodrigues, inspirador da forma conto-romance, as coisas foram se encaixando e se encadeando. Em seguida, a editora Oito e Meio abriu o concurso para o Maratona Literária, foi quando tive a ideia de escrever o livro de contos com essa temática, que acabou sendo agraciado com Menção Honrosa no Prêmio Casa de Las Américas de 2019, o que me deu enorme alegria, especialmente por ser uma autora iniciante.
6 - Acima de tudo, o livro é sobre trauma e violência, uma constante em nossa sociedade, por isso, sempre presente e trabalhados em nossa literatura. Como você observa esta questão?
S.G.: O cuidado com a infância das nossas crianças é um tema que foi pertinente no passado, ainda é no presente e certamente será no futuro. Não dá para pensar num país próspero e igualitário se nele ainda persiste o trabalho infantil, crianças drogadas ou que traficam, crianças sem qualquer outro meio de subsistência que não seja a vida marginal. Onde o Estado não chega, chega a marginalidade, que acaba nos atingindo eventualmente. O alerta é pertinente e já vem de décadas. Não é algo novo, mas nossos políticos preferem não ver. No meu entendimento, a educação deve ser encarada como um projeto supra-partidário, encabeçado por pessoas técnicas e de vivência na área, algo a ser levado com mão de ferro e que não fique à mercê da vontade política de um ou outro partido. Essa causa devia ser abraçada por todos.
7 - Falamos de infâncias nesta entrevista e em nossa resenha, isso porque pensamos haver infâncias mais protegidas que outras. Neste país tão desigual, algumas infâncias tem uma bola protetiva maior. Concorda? Ou já ultrapassamos isto, e não há mais qualquer infância a salvo de nossas incompetências?
S.G.: É equivocado pensar que classes sociais mais favorecidas protegem melhor e mais efetiva qualquer criança. Crianças são vítimas desde sempre, vide o caso de Isabella Nardoni. A incidência do número alarmante de estupro de vulnerável na própria casa também permeia todas as classes sociais. Também o bullying nas escolas. Também os maus-tratos e abusos nas creches. Quando me refiro a uma boa educação, além de acesso a escolas de boa qualidade, falo de senso e de sensibilidade para fazer a criança refletir sobre si mesma, sobre o mundo em que vive, sobre direitos e deveres a ser encarados com ética. Ainda vejo a infância do nosso país como vítima de nossas incompetências parentais, sejam elas emocionais, psicológicas ou civis, enquanto cidadãos que não sabem discernir sobre seus direitos e deveres. O que temos visto com as gerações é a persistência do preconceito, da intolerância, do racismo, da mesma incompetência parental da qual o indivíduo foi vítima. Não é possível mudar se nós não mudamos.
8 - Marcelino e seus "satélites" representam quanto de nossos dramas?
S.G.: Marcelino e seus satélites representam sem dúvida nossos dramas: as faltas, a conivência espúria, a injustiça, a opressão, o abandono, a marginalidade, o oportunismo, a ambição, o abuso, a negligência, o remorso, o ressentimento, o desamor, a privação, a culpa, a penitência, a desolação, a intolerância, os maus-tratos, a tristeza de se saber injustiçado num mundo de invisibilidade. Marcelino sobrevive da maneira que sabe e da maneira que pode. Os dramas lá estão, com todas as obscenidades desse infanticídio presumido e anunciado.
9 - Em nossa avaliação falamos da vivacidade e da qualidade de sua literatura. Temos visto, inclusive, muitos bons livros longe das principais casas editorais do mercado nacional. Como você avalia a literatura brasileira hoje?
S.G.: O mercado editorial não é muito favorável ao autor iniciante, que tem de provar seu valor com algum extra que lhe dê credibilidade, já trazendo à editora que o publica um número considerável de leitores ou de prêmios em concursos. Temos muitos bons e novos talentos ainda sem ressonância no mercado, infelizmente. Além disso, o percentual correspondente a ficção dentro do mercado editorial é bem inferior à não-ficção. Não é um bom prognóstico. No entanto, quem faz literatura persiste sempre porque a literatura é nele/a algo maior que ele/a mesmo/a, algo que o/a faz respirar, quiçá, viver. Os escritores/as são as pessoas mais insistentes que já vi. Graças a Deus por isso.
10 - Nesse sentido, você que tem uma bonita vivência acadêmica, o quanto nossas academias têm sido capazes de conhecer ou se dedicar às narrativas fora de um eixo mainstream?
S.G.: Não tenho acompanhado muito o trabalho sobre as narrativas literárias nas academias, confesso, mas posso citar com orgulho a tese de doutorado (em andamento) na Universidade de Brasília do professor e amigo José Benedito dos Santos, que pesquisa textos de autores/as africanos e amazonenses. Quisera seu trabalho possa servir de inspiração para que outras narrativas fora do mainstream possam ser valorizadas e divulgadas com a importância que lhes é devida. Afinal, a literatura é feita de tantos, de todos e de tudo.
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Resenhas