Fogo! Fogo! 10 Considerações sobre A Incendiária, de Stephen King

O Blog Listas Literárias leu a nova edição de A Incendiária, se Stephen King publicada pela editora Suma, que diga-se de passagem, tem feito um grande trabalho nas edições da Biblioteca Stephen King, reeditando clássicos do autor em edições de grande qualidade; neste post as 10 considerações de Douglas Eraldo sobre o livro, confira:

1 - Ficção científica sem perder os elementos de suspense que marcam o trabalho do autor, A Incendiária é uma narrativa eletrizante, de fuga e de conhecimento que nos leva a uma escalada vertiginosa de adrenalina, e tudo isso com um pano de fundo realista que assim como outras obras do autor reforçam sua capacidade bastante única de produzir trabalhos que a princípio parecem ser tão somente entretenimento, mas que, a despeito de todos os preconceitos que King levanta, sua publicação tem sumo suficiente para os mais exigentes por literatura, isto porque a narrativa desta jovem incendiária, menos de ser sobre poderes especiais, fala de política e poder, questões muitas vezes presentes nos trabalhos de Stephen;

2 - Para perceber os elementos relevantes a em A Incendiária, é contudo, importante observar o contexto em que a obra é publicada, anos 80 quando a memória recente do autor e da sociedade ainda assimilam rescaldos de uma Segunda Guerra, e mais ainda, da Guerra Fria e as estranhas experiências desenvolvidas que estimularam a paranoia (ou nem tão paranoia) dos abusos autoritários de uma ciência em nada ética e com responsabilidade do Estado. O próprio King no posfácio desta edição trás para o leitor tais questões que aconteceram tanto nos Estados Unidos quanto nas Repúblicas Soviéticas que desenvolveram no mundo real, programas dignos de um Arquivo X;

3 - É nesse contexto que então surge a protagonista e incendiária Charlie McGee, uma jovem menina em estado permanente de fuga, acompanhada pelo Pai. Charlie, filha de duas cobaias de testes governamentais com uma droga chamada Lote Seis, acaba desenvolvendo uma mutação - ou evolução - que lhe permite então o poder da pirocinese, elemento que aqui não é tratado como magia ou fantasia, mas sim desenvolvimento tecnológico levando a obra de fato para o campo da ficção cientifica;

4 - Tais experimentos são coordenados e executados por uma agência governamental tão soturna quanto a CIA e a NSA, a Oficina, que desenvolve o projeto do Lote Seis do qual participam os pais de Charlie e que então passa a caçar a garota e o pai, Andy, para dar prosseguimento às experiências, e, claro, além de proteger os recursos do contribuinte americano, proteger sua democracia,  e realizar ainda mais experiências naquilo que considera propriedade e "arma" útil nos interesses do Estado;

5 - Nesse ponto, temos então já dois caminhos que dão esta amplitude a que me refiro sobre o trabalho de King. De um lado estão todos os elementos narrativos que fazem da obra uma ótima opção para entretenimento, a ação, a adrenalina descarregada pela fuga alucinada, o próprio suspense gerado quando acompanhamos especialmente os pontos de vistas dos fugitivos, algo que aumenta a tensão, questões que fazem do livro uma possibilidade ampla para muitos leitores;

6 - E eis o que, imagino, diferencia King doutros autores que apenas produzem entretenimento. Nestes casos, a coisa para por aí, mas King, entretanto, leva-nos a outras camadas, e aqui falo da questão política presente (algo que vimos também em A Zona Morta), algo que não surge em pinceladas vazias, pois ao ambientar e construir tais personagens e tramas, o debate e a reflexão política de A Incendiária são mais profundos. Há uma espécie de crítica que se dá principalmente pelo próprio fato do autos expor vísceras apodrecidas e doentes da democracia americana;

7 - Tal crítica, e um bom leitor a perceberá, se concentrará justamente nas contradições e nos preços cobrados de alguns para que tal democracia funcione, uma democracia que só permite a liberdade desde que não se contrarie os interesses do Estado, como veremos no jogo entre a Oficina e os McGee. Tais elementos se tornam mais claros em momentos como no encontro com os Manders, em que o autoritarismo e a tirania de tal democracia estatal saltam aos olhos, contrastados especialmente quando o próprio fazendeiro tem de fazer lembranças a seus direitos civis ignorados, e ao se contrapor à autoridade, profere uma das mais complexas e polêmicas críticas no interior da obra perguntando à esposa "queria que me comportasse como um bom cidadão alemão?" numa alusão clara à apatia social diante os arbítrios de Hitler, mas que se observarmos bem, no contexto do romance soa como um tiro acachapante à própria sociedade americana, pois o que não deixa de fazer nesse exato momento é justamente comparar a deficiente democracia americana ao terrível nazismo;

8 - Os Manders, Charlie, Andy, todos eles sentirão então o peso do Estado e o poder destas autoridades soturnas que atuam via de regra à margem da legalidade. Tal componente político é de toda forma bastante amplo, e aí retomando o contexto em que é produzida, se dá após muitas revelações que conspurcaram o imaginário de democracia perfeita dos Estados Unidos. Revelações de planos para matar governantes contrários, planos da CIA que envolviam tráfico de drogas, enfim, ações oficiais à margem de tudo aquilo que é legal, ou seja, crimes realizados pelo próprio governo servem de combustível para Stephen King, que inclusive assume estas fontes sombrias, mas bastante realistas;

9 - Logicamente esse "realismo" ao ser pintado pela ficção pode perder ou ganhar alguma coisa, pois nos entrega personagens aparentemente estranhos ou apenas possíveis na ficção, o que talvez faça que nem todos percebam os elementos palpáveis de nossa realidade. Além disso, é preciso ainda observar com mais detalhes a caracterização de determinadas personagens que soam às vezes um tanto caricatas, fato que pode ser tanto pelo caráter satírico ou apenas deficiências mesmo, e que acabam produzindo certo balanço entre o real e a fantasia, ajudando nesse processo de colocar a obra do autor nestas fronteiras às vezes difusas dos gêneros;

10 - Enfim, alguns livros, caso deste, nossos itens nem sempre dão conta de tudo. Tratei aqui um pouco da política presente em A Incendiária e seu elemento bem interessante em que King nos desenha uma democracia autoritária cuja influência distópica se revela nas referências a 1984, de George Orwell e a Kafka (aliás, a intertextualidade é mais um dos elementos literários importantes de Stephen King). Mas além desse ambiente político e distópico, temos toda a abordagem acerca do poder, e da própria detenção de poderes, digamos peculiares, caso de Charlie. E nesse sentido, nos entregamos à dialética, para observar que se de um lado temos tais elementos sociais carregados de crítica e desconfiança, a jornada de Charlie, todavia, do contrário de contrapor a violência, o poder e a autoridade, acabará justamente justificando a guerra e a morte, desconstruindo sua infância que até então tinha se construído de modo a temer e não usar seus "dons", para uma adolescência em que a descrença e a brutalidade do sistema a levam não mais renegar seus poderes, mas simplesmente conceber que a partir de então suas escolhas serão quando e pelo quê matar.


       

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