O Blog Listas Literárias leu O Conto da Aia, de Margaret Atwood, publicado pela editora Rocco; neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro, confira:
1 - Dentre as narrativas distópicas, O Conto da Aia é uma das mais recentes (especialmente se formos considerar distopia as narrativas mais próximas do gênero que eclodiu no século XX do que as publicações de caráter popular e recentes, ainda que com elementos distópicos, não o são a pleno, caso desta obra de Atwood) e traz para o gênero novas preocupações quanto ao poder ao construir em sua obra uma teocracia totalitária cujas grandes vítimas serão as mulheres;
2 - Mas antes de atermo-nos a elementos presentes na narrativa, no caso deste romance, não se pode interpretá-lo sem levar em consideração suas escolhas e opções estéticas de alto compromisso literário. Embora chamado de O Conto da Aia, a narrativa é na verdade a transcrição de áudios gravados pela autora Offred, uma Aia que registra em "tempo presente" a ascensão de Gilead, uma teocracia que substitui o governo americano e em pouco tempo, a partir de preceitos bíblicos instaura um regime totalitário e plenamente machista. Nesse sentido, o estético, as dúvidas ou questionamentos que saltarão ao leitor, são debatidos na última parte do livro com o registro de uma palestra sobre "estudos históricos" que complementa o romance de maneira exitosa reforçando suas subjetividades e as reflexões propostas na narração (de caráter oral, portanto);
3 - Aliás, ao avançar no tempo com as "notas históricas do Conto da Aia", temos mais um dos elementos de aproximação desta obra e o clássico de George Orwell, 1984, que no romance também avança no tempo da ação vivida por Winston ao falar da novafala como método de trazer elementos de Oceania. Este instrumento estético não será o único reconhecível, e muitas personagens e acontecimentos na obra de Atwood se aproximam da obra de Orwell, todavia com enfoques bem diferentes;
4 - Logicamente a diferença não se dá apenas pela mudança de perspectiva, no caso deste romance, a partir da narrativa de uma mulher, e pelo próprio fato de nesta ficção totalitária serem elas as principais vítimas do regime (aliás, qual regime trata as mulheres com a igualdade necessária e requerida). Observar o romance apenas pela discussão de seu feminismo seria restritivo e inviabilizaria uma reflexão plena, pois para além deste debate, o romance deixa claro que os ideais totalitários estão em diversas partes e podem surgir de muitos campos, ideais estes que encontram terreno fértil nas religiões, quando muitas ainda tem bastante dificuldade de conviver com o diverso;
5 - Mas utilizar o romance como alerta dos "perigos" do fanatismo e fundamentalismo religioso seria outro erro também, pois embora uma teocracia patriarcal totalitária, parece-nos não ser este o fim principal do novo regime, ao cabo que embora não aparente, é o desejo de poder e dominação que comanda tudo;
6 - Então nesta luta por poder é que as mulheres tornam-se vítimas do novo regime. Claro, que não se perde aqui que tudo se é possibilitado e construído a partir do machismo histórico presente na sociedade, a ponto que chega a ser quase que uma espécie de revanche, de retomada dos homens de estruturas ultrapassadas mas que lhes eram favoráveis, mergulhando assim as mulheres novamente à subserviência servil. Nesse sentido a obra é bem interessante porque pensa e leva em consideração as diferentes possibilidades que podem permitir que tal regime exista (e que na verdade, temos versões aproximadas no mundo real) e lhe sustente;
7 - Assim, a narrativa de Offred é capaz de nos transmitir toda sua impotência diante dos fatos, mesmo mergulhada numa nova e surreal realidade. Nos narrando no tempo presente (mas que você deve ver as notas históricas) e avançando em reminiscências do antes, ela constrói uma perspectiva sombria de que as coisas sempre podem piorar, algo que surge em muitas de suas reflexões entremeando seu "presente" e suas lembranças;
8 - Offred por sinal é uma grande personagem literária, dotada de grande complexidade e não imune a suas próprias contradições, sendo que deste modo sua ação não está destituída de falhas e contradições que a tornam humana em todos os sentidos, em suas virtudes e também em seus erros;
9 - Deste modo temos portanto uma narrativa de grande vigor, estéticos e literários, especialmente porque ela não procura te explicar as coisas, pelo contrário, não é de seu interesse esmiuçar os meandros da política de Gilead, mas sim trazer a perspectiva de uma voz distante de maiores segredos, mas com experiências capazes de nos trazer a compreensão do todo ao mesmo que de certa forma, aí se afastando das demais distopias, mostrando que por mais totalitário que seja uma regime, à sombra pode haver resistência, e para isso antes de mais nada, é preciso sobreviver;
10 - Enfim, O Conto da Aia é uma narrativa de grande qualidade e cuja discussão e reflexão deve ir para além deste post, pois reúne elementos para discussões e debates interessantíssimos, especialmente pela forma que Atwood consegue dar ao seu trabalho, que do contrário que possa parecer, a despeito de interpretações panfletárias, é uma narrativa que foge do mero panfleto, pois seu texto subjetivo e crítico encontra lugar entre as publicações relevantes para discutir mazelas que, pelo visto, ainda estão longe de ser superadas.
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