10 Perguntas inéditas para Christopher Kastensmidt

O Blog Listas Literárias entrevistou o autor Christopher Kastensmidt, amigo há tempos aqui do blog e que recentemente lançou o livro A Bandeira do Elefante e da Arara, finalista do prêmio Nebula. Nestas 10 perguntas veremos o livro, a carreira de autor e acima de tudo nossa literatura fantástica, confira:

LL: 1 - A Bandeira do Elefante e da Arara traz para a literatura fantástica brasileira um elemento nacionalista presente, por exemplo, no modernismo e no romantismo brasileiro. Tendo isso em mente você vê o fantástico nacional ainda muito preso às criaturas, mitos e lendas estrangeiras?

 C.K.: Sinceramente, acho que finalmente ultrapassamos esta fase. Eu poderia passar horas falando sobre autores de ficção especulativa que trabalham com elementos nacionalistas. Apenas levando em conta o gênero de fantasia, temos autores como Simone Saueressig, Felipe Castilho, Walter Tierno, Roberto de Sousa Causo, J. Modesto e adiante. Expandindo para outros gêneros especulativos, como terror e FC, penso em Marcus Achiles, Enéias Tavares, Giulia Moon, Cirilo S. Lemos, Nikelen Witter, Pedro Vieira, Marcelo Bighetti, A. Z. Cordenonsi, Leo Lopes, etc., etc. Há muitos outros, impossível fazer uma lista completa. Todos que citei aqui já escreveram obras que exploram temas especulativos dentro do território nacional. Talvez estas obras não cheguem tão facilmente às livrarias quanto outras, mas vale a pena os leitores buscarem.

LL: 2 - Alias, você está há algum tempo no país, mas certamente sua formação como leitor se dá em solo americano. Por isso, poderia nos contar em que momento se dá esse encantamento pela cultura e pelas lendas brasileiras? 

C.K.: Foi na época que comecei a visitar o Brasil, em meados dos anos 90, que busquei livros de história para me ajudar a aprender o português. Fiquei fascinado com a história do país, tão diferente da história dos EUA, por exemplo. As lendas brasileiras descobri enquanto eu estava trabalhando em um projeto de game com a minha antiga empresa, a Southlogic Studios. Criamos uma proposta de um game na Floresta Amazônica, e buscamos inspiração no folclore nacional. Familiarizei-me com dezenas de lendas nesta época. O game nunca foi produzido, mas certamente foi uma das principais inspirações para A Bandeira.

LL: 3 - Nesse mesmo sentido, a construção e escritura da obra deve ter demandado muita pesquisa e também leituras, poderia contar-nos esse processo de construção? Que obras colaboraram para o livro, suas referências, enfim, como nasce A Bandeira do Elefante e da Arara? 

C.K: Bom, não vou fazer uma lista completa aqui, já que pesquisei uns 200 livros ao longo dos sete anos que escrevi o romance. Em termos muito gerais, pesquisei livros de história, folclore, comida, crônicas, escravidão, cultura indígena, e outros. Já comecei a escrever uma grande postagem listando estas centenas de obras de referência, que vou colocar no Medium em algum momento, provavelmente. Também, se sair o livro de RPG da série no ano que vem (outra parceria com a Devir), vou colocar uma bibliografia com dezenas das referências principais. Assim, os leitores vão poder usar estas obras como inspiração para suas campanhas, da mesma forma que as bibliografias nos antigos livros de Dungeons & Dragons influenciaram as leituras da minha adolescência. Inclusive, acho que descobri as histórias de Lankhmar, através destas bibliografias. Os protagonistas destes livros, Fafhrd e Gatuno, influenciaram a criação de Gerard van Oost e Oludara. 

LL: 4 - Você inclusive trabalha bastante sua obra nas escolas, o que lhe pode possibilitar um interessante feedback destes jovens leitores. Como eles estão recebendo essa literatura fantástica de elementos nacionais em contraposição aos vampiros e zumbis, por exemplo? 

C.K: Falei com milhares de alunos em dezenas de escolas nos últimos anos. Em geral, os jovens adoram a série. Eles gostam de ver as criaturas que eles estudam no colégio tomar forma nestas aventuras. O feedback tem sido altamente positivo. Os professores também me contam como gostam de trabalhar com A Bandeira em sala de aula, pelo fato de eu ter “escondido” uma enorme densidade de fatos históricos e culturais nas páginas, que o aluno nem percebe, até discutir as obras em sala de aula depois. Os leitores adultos, porém, tendem a ser mais fechados. Muitos já vêm com a atitude de “tudo que é nacional é ruim”, mesmo sem ter consumido nada da produção nacional. Dá para ver claramente que é a sociedade que vai impondo este preconceito sobre os leitores ao longo dos anos. O que estas pessoas não sabem é que muita produção “internacional” é justamente criada por brasileiros. Temos artistas criando HQs para Marvel e DC, diretores fazendo desenhos animados de alcance internacional, como Rio e Peixonauta, e games com milhões de unidades vendidas mundialmente, como Knights of Pen & Paper e Horizon Chase. A produção cultural brasileira é uma das mais fortes do mundo neste momento, mas tem muita gente que nem quer saber, preferem permanecer na ignorância para poder criticar à vontade. Felizmente, os jovens ainda não possuem este filtro. Eles podem julgar por si mesmo e chegar às próprias conclusões, e acredito que vamos ver uma mudança de atitude na próxima geração.

LL: 5 - Voltando ao livro e suas repercussões, a obra foi finalista do prêmio Nebula, um dos mais importantes no mundo. No que isso tem auxiliado a obra e o quanto isso pode colaborar para a divulgação tanto da sua escrita, mas também da cultura representada? 

C.K: A indicação para o Nebula foi certamente o reconhecimento mais forte da minha carreira. Sendo um prêmio votado pelos autores profissionais da área, muitos dos mais importantes do mundo, é realmente uma marca de qualidade. Na época da indicação (2011), deu uma certa onda de notícias, mas no Brasil, houve apenas o primeiro livro pocket no mercado (Duplo Fantasia Heróica, com o primeiro conto d’A Bandeira e outro da Saga de Tajarê, do Roberto Sousa Causo). Por isso, não refletiu muito em questão de disseminação das histórias, mas ajudou na divulgação do mundo. Onde os jornalistas nacionais da área reconheceram a importância da indicação, houve bem menos reconhecimento entre os leitores. Por exemplo, colocamos uma estampa no novo livro sobre a indicação do prêmio. Quando a Nerd Loot #12 recentemente incluiu uma versão inédita e exclusiva do livro para seus milhares de assinantes, assisti uns 50 vídeos de unboxing, para ver a reação das pessoas. Acho que apenas uma tinha ouvido falar do prêmio. Ao mesmo tempo, a maioria (em geral, um público jovem) achou interessante a ideia de produzir uma obra baseada na mitologia nacional. Fora do Brasil, o prêmio tem muito mais peso, e tem ajudado a divulgar a venda digital que faço através da Amazon, em língua inglesa.

LL: 6 - Aproveitando para matar uma curiosidade, você escreveu-o em inglês? 

C.K: Tem coisas que escrevo em inglês e outras em português, mas este livro escrevi em inglês. Não adianta, o meu estilho de escrever em inglês continua muito melhor desenvolvido. Também, fez sentido na questão comercial, já que eu consigo lançar os livros no exterior mais facilmente, tendo o texto base em inglês. Encontrar tradutores de português é bem mais complicado. O grande autor, editor e acadêmico Roberto de Sousa Causo fez a tradução para português, e não consigo imaginar quem eu mais gostaria que fizesse este trabalho. Eu também verifiquei a tradução frase por frase, para trocar ideias com Causo e tentar permanecer o mais fiel possível ao texto original. Sendo tradutor eu mesmo, sei que sempre vão ter diferenças, principalmente no “ritmo” do texto, mas achei excelente a tradução.

LL: 7 - Um detalhe me chama a atenção nos protagonistas, afinal são aventureiros que acabam matando seres fantásticos nesta jornada, e isso numa obra que reforça a potencialidade da fantasia brasileira. Não lhe parece um jogo curioso e interessante? 

C.K: Enfrentar criaturas mitológicas perigosas é uma tradição literária das mais antigas. Desde o Minotauro do Teseu ao dragão do São Jorge ao Basilisco de Harry Potter, isso não é nenhuma novidade na ficção. A única diferença na minha obra é que os perigos são inspirados no folclore brasileiro. Um exemplo do livro é o Capelobo, uma criatura que, de acordo com a tradição oral, embosca humanos e chupa os miolos das suas vítimas. Com matéria prima desse nível, escrever histórias de aventura, fantasia ou terror torna-se fácil. Curioso é o fato de mais gente não ter feito antes. Um tema constante é que os protagonistas não atacam à toa, eles enfrentam criaturas realmente perigosas, que matam seres humanos por comida ou por esporte. Quando um ser mitológico não representa perigo aos humanos, muitas vezes acaba se tornando aliado dos heróis.

LL: 8 - Por falar nos protagonistas, Gerard e Oludara possuem personalidades bem distintas, como foi o processo de imaginá-los e uni-los? Além disso, como observas a forma de algum modo irredutível que ambos lidam com suas convicções? 

C.K: Eu gostei muito de escrever neste formato, com uma dupla de protagonistas, exatamente para poder olhar questões culturais com olhares distintos. Principalmente neste livro, ambientado em um período histórico, colocar apenas um ponto de vista pode aparecer algum tipo de julgamento. Prefiro permanecer neutro como autor, tentar recriar o período (ao melhor das minhas habilidades), e ver como os protagonistas reagem. Voltando aos protagonistas, além de ser de culturas e religiões diferentes, eles possuem personalidades diferentes. Em parte, Oludara representa o id psíquico e o Gerard o superego. Oludara topa qualquer coisa, onde Gerard sempre quer colocar limites morais sobre tudo. Brincando com isso, consegui criar tanto conflitos quanto várias situações engraçadas.

LL: 9 - A Bandeira do Elefante e da Arara todavia se ambienta num período colonial propício às aventuras e a presença de seres como saci, curupira etc.  Você julga que tais criaturas e elementos fantásticos de caráter nacional poderiam ser utilizados em obras mais contemporâneas e urbanas? 

C.K.: Certamente. O exemplo perfeito disso é a série O Legado Folclórico de Felipe Castilho. Felipe é o Rick Riordan brasileiro. Ela utiliza o folclore nacional em ambiente urbana, em livros infanto-juvenis. Recomendo!

LL: 10 - Para encerrar, você é um grande militante da fantasia no país, como observas a literatura fantástica hoje? Não fica uma sensação de que houve um recuo das expectativas para o gênero três, quatro anos atrás? 

C.K.: Dediquei anos da minha vida divulgando a fantasia nacional, tanto dentro do Brasil (como coorganizador da Odisseia de Literatura Fantástica) quanto fora (com o Concurso Hydra, que realizo com Tiago Castro). Durante este tempo, tive o prazer de conhecer centenas de editores, escritores e críticos nacionais do gênero. Através das minhas conversas e de toda esta experiência, posso garantir, sem sombra de dúvida, que houve um recuo das expectativas para o gênero. Cesar Silva recentemente afirmou que estamos no quinto ano seguido de queda nos lançamentos brasileiros de FC e fantasia. Chegamos ao auge em 2010 e já voltamos para os patamares de 2005/2006. Para quem não conhece, Cesar é um dos principais apoiadores da literatura fantástica nacional. Ele organizou, ao lado de Marcello Simão Branco, dez edições do Anuário Brasileiro de Literatura Fantástica. O fenômeno aqui é duplo: houve o encerramento de várias pequenas editoras que abriram ao longo de 2005 a 2010, e uma baixa de lançamentos também das grandes editoras. Não é apenas questão de títulos lançados. Perto de 2010/2011, também tivemos uma onda de fenômenos de vendas do gênero, como Eduardo Spohr. Os autores começaram a sonhar em grandes números de exemplares vendidos. Mas parece que esta tendência morreu nos últimos anos. Posso estar enganado, mas os últimos lançamentos de sucesso que eu me lembro foram de 2013/2014 com O Espadachim de Carvão e A Lenda de Ruff Ghanor. Seria fácil culpar a crise, mas conheço também centenas de autores estrangeiros, e eles também estão sofrendo. Do que ando ouvindo, as tiragens das grandes editoras estrangeiras do gênero caíram 50% ou até 75% nos últimos anos. A tendência de o autor viver só de literatura está cada vez mais longe. Ainda acredito que uma das saídas vai ser a venda digital, onde o autor ganha 70% da venda (em contraste ao 10% que ganha na venda do livro físico), e consegue alcançar um público mundial desde o dia do lançamento. Porém, o leitor brasileiro ainda não se acostumou com o formato. No exterior, a aceitação é muito maior, tenho amigos que vendem mais de 100.000 livros digitais por ano, mas não conheço quem vende nem um décimo deste número aqui no Brasil. Para completar, eu gostaria de agradecer ao Douglas e ao site Listas Literárias pela oportunidade e pelas perguntas excepcionais!

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