10 Considerações sobre Uma Produção de Kim Jong-Il, de Paul Fischer ou como o “Querido Líder” se tornou um cinéfilo…

O Blog Listas Literárias leu Uma Produção de Kim Jong-Il, de Paul Fischer publicado pela editora Record; neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro, confira:

1 – Uma Produção de Kim Jong-Il se apresenta aos leitores como um thriller de não-ficção, o que faz sentido, pois a narrativa real da reconstrução histórica feita por Paul Fischer se dá por meio de uma narrativa frenética e intensa como na ficção, numa sensação que se amplia ainda mais quando nos deparamos com as situações surreais e inacreditáveis que são apontadas no livro;

2 – Na obra, que busca tratar da “incrível e verdadeira história da Coreia do Norte e do sequestro mais audacioso que se tem notícia” o autor conta do sequestro do cineasta sul coreano Shin Sang-ok e de sua esposa e atriz Choi Eun-hee que nos anos 70/80 foram levados para o norte num audacioso projeto para o cinema nacional da Coreia do Norte; 

3 - Entretanto, embora concentrado na história dos dois artistas, a obra traça um amplo desenho da Coreia do Norte por meio de testemunhos e das poucas leituras que se tem sobre o país considerado o mais fechado do mundo. Nesse sentido o autor apresenta aos leitores um país cheio de contradições e de um cenário totalitário em que o regime usa de todos os recursos disponíveis para oprimir e controlar sua população, entre esses recursos,é claro, o cinema; 

 4 – E exatamente neste ponto surge a segunda e não menos importante temática do livro: a paixão do denominado “Querido Líder” Kim Jong-Il cinema, paixão que o faz colocar todo o estado e o regime a serviço de operações ligadas ao cinema, numa devoção tamanha que permitiu-se cogitar que Jong-Il seria o maior colecionador de filmes, sendo seu acervo provavelmente o maior do mundo, que chegou-se a estimar em vinte mil títulos; 

 5 – Num país em que Kim Jong-Il era o único a ter acesso às produções estrangeiras, algo não explícito mas que o leitor é capaz de compreender facilmente é que o ditador para além de sua paixão, também via no cinema e na arte uma ferramenta a serviço de seu regime, além de poder ser uma commoditie de seu país de tão parcas relações econômicas, e assim, mais uma fonte de receita para um país “comunista” cuja elite do partido desfrutava de boa parte do que o capitalismo podia oferecer; 

 6 – Tudo isso, indo além do sequestro dos cineastas, torna o livro de Fischer interessante, pois narra acontecimentos ainda reflexos do mundo pós-guerra, mundo esse que certamente tem grande responsabilidade com o que ocorreu na Coreia, dividindo o país em dois e dando ao norte um socialismo que mais serve como máscara para o projeto de poder dos Kim, que conforme observamos na leitura se torna algo muito particular e distanciado do que seria o socialismo de Marx, que para os comandantes da Coreia serve apenas como desculpas para seu estado totalitário; 

 7 – Então, enquanto acompanhamos os dissabores dos sequestrados Shin e Choi, um cenário extremamente assustador salta aos olhos dos leitores e supera as melhores ficções do gênero. Na Coreia do Norte apresentada por Fischer através de documentos, depoimentos e do pouco que se conseguiu descobrir se cria um cenário muito mais perturbador que o imaginado em obras como 1984 e Farenheit 451 pois tudo que poderíamos conceber para nossos vilões literários, os Kim o fizeram na prática; 

8 – Além disso, o livro mostra que mais do que a paixão de Kim Jong-Il pelo cinema, mostra-o como um amplo conhecedor da manipulação narrativa, já que toda a Coreia do Norte é revelada como um grande palco em que tudo é encenado e falso, e não só os filmes de Kim Jong-Il, mas efetivamente tudo não passa de uma grande encenação com um único fim, manter os Kim no poder, algo que é mantido pelo medo, pela opressão e por uma máquina impiedosa que é o regime dos Kim; 

 9 – É nesse cenário todo que os cineastas terão de sobreviver a partir de seus sequestros, e o mais curioso é de que depois de pressões, torturas e prisões, ambos perceberão que a janela mais próxima para uma quase impossível liberdade seria fazer justamente o que o ditador (importante dizer retratado em todas as suas contradições, do garoto mimado ao violento e explosivo ditador, como do conhecedor e inteligente cinéfilo, que é em grande parte quando surge sua visão acurada e capacidade de controlar, manipular e jogar o jogo do poder) Kim Jong-Il deseja, ou seja, elevar o cinema norte coreano a um novo patamar. Nesse ponto, é onde também surge as contradições internas de nossos “protagonistas”, especialmente no caso de Shin, que compartilha em pé de igualdade com Jong-Il o fato de amarem o cinema acima de praticamente tudo; 

 10 – Enfim, Uma Produção de Kim Jong-Il é uma leitura interessante em diversos sentidos, que vão da curiosidade e conhecimento geopolítico do mundo a paixão pelo cinema e sua arte, além de que sua aproximação intencional do thriller nos auxilia a observar os acontecimentos inacreditáveis de um país misterioso e secreto o suficiente para estimular a curiosidade do mundo sobre ele.



4 Comentários

  1. "um país 'comunista' cuja elite do partido desfrutava de boa parte do que o capitalismo podia oferecer"
    Por que as maiores distopias a respeito de um país socialista sempre retratam a realidade capitalista? Quer me dizer que o pior que pode ser dito sobre países socialistas é que ele é igual aos capitalistas? ¯\_(ツ)_/¯

    Além do mais, a foto da estante, com Miriam Leitão ao lado, já serve de alerta para que a crítica não seja tomada como supostamente imparcial ;)

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    1. Se você observar, não entra no texto avaliação quanto ao regime de Kim Jong-Il, (que é um dos mais sangrentos e desastrosos do mundo), mas sim da obra ;)

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    2. Dos mais sangrentos? Como aquelas notícias de ministros fuzilados e que aparecem vivos na televisão na semana seguinte? ¯\_(ツ)_/¯

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