O Blog Listas Literárias leu Faca - Reflexões de um atentado, de Salman Rushdie publicado pela Companhia das Letras. Neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro em que seu autor busca entender os 27 segundos mais tenebrosos de sua ameaçada vida pela ignorância e pela intolerância humana, confira:
1 - Faca - Reflexões sobre um atentado, de Salman Rushdie é a tentativa do autor em entender as insanas motivações do atentado à faca sofrido em 12 de agosto de 2022, quando um jovem radicalizado pela internet tenta levar a cabo a fatwa imposta sobre o autor pelo aiatolá Khomeini em 1989 devido ao seu livro Versos Satânicos. Justamente por isso, antes de mais nada, precisamos dizer que não trata-se tão somente do evento de 2022, é todo o olhar de mente de um literato para a intolerância e o ódio que por décadas fizeram-no refém das terríveis possibilidades de uma ameaça permanente. Aparentemente uma narrativa do eu, mas um eu constituído de tantos outros, que por meio do dialogismo da linguagem, tenta decifrar a natureza do ódio;
2 - Uma narrativa dialógica embora pelo próprio autor uma narrativa do eu conscientemente marcada pela escolha de primeira pessoa, porque a despeito de tudo isso, o que nós como leitores perceberemos são as tantas vozes que o eu-escritor vai revelando o seu eu-leitor. Não se trata apenas das lembranças do fatídico atentado, Rushdie percorre as mais diferentes vozes literárias que o constituem para tentar compreender a insânia da ignorância e do ódio, algo com que ele tem de lidar por toda a sua carreira. Com isso, não só um porta para os bastidores de tal horrendo fato, sua recuperação e sua forma de lidar com tudo, a presença de muitas e valiosas referências que fazem da leitura algo amplo para além do atentado;
3 - Obviamente, não queremos dizer com isso que a centralidade não esteja no fato nefasto de 2022. As reflexões nascem a partir da necessidade de o autor devolver à violência a arte. "Escrever seria minha maneira de admitir o que acontecera, de assumir o controle, torná-lo meu, recusando-me a ser uma mera vítima. Eu responderia à violência com a arte" confessa o autor, cujo primeiro livro pós atentado é este, sua resposta, uma resposta como bem sabemos os canalhas detestam porque a arte é o centro de ódio e rejeição de todos os canalhas;
4 - O livro está dividido em oito capítulos, sendo que no primeiro somos apresnetados ao autodeclarado modo de pensar de Rushdie e que converge para nossa observação de narrativa do eu, uma narrativa não ficcional, mas dotada de estética e dialogismo. Isso porque o mesmo ressalta sua maneira "associativa" de ver e compreender as coisas. Soa quase como um Quixote consciente que analisa seu mundo real a partir das ficções que o moldaram, mas diferente do Dom que subverte o real, seu modo associativo desnuda esse real. Esse primeiro capítulo, Faca, diferentes conexões de descrições na construção do atentado, do estranhamento do momento do fato, os 27s que de certo modo remodelaram muitos de seus pensamentos e isso para um homem que há décadas perdera a liberdade sob a permanente ameaça de morte, não é pouca coisa;
5 - Mas não pretendemos ficar aqui na linearidade dos capítulos ou mesmo nas aprofundações de alguns deles, por isso saltamos diretamente para aquele em que o autor não só parte para uma composição ficcional e especulativa, como tenta compreender e desnudar as raízes do ódio que levou a um jovem de vinte e quatro anos desferir-lhe dezenas de facadas. "O A." é o sexto capítulo das reflexões de Rushdie e só nele o autor tenta focar em seu assassino não completo, porque, como vimos, para além da própria existência solitária, nem mesmo ali consegue o seu feito e fracassa. A. é como Rushdie vai referir-se ao autor do atentado no decorrer do livro, nesse capítulo, mais do que se referir, por meio das possibilidades da literatura vai imaginar o possível encontro jamais realizado;
6 - Na verdade o que Rushdie faz é a partir das informações públicas, escrever um possível diálogo de enfrentamento de ambos. Talvez o meio encontrado de enfrentar seu algoz e a ignomínia praticada. Por meio desse diálogo construído Rushdie é um inquiridor da insensatez e não inquire apenas A., mas todo o pensamento odioso e radical de nossos tempos. No diálogo imaginado ao mesmo tempo que questiona, denuncia as mentes doentias - coisa que nossos tempos de Yutubi e redes sociais encontraram mentes propícias à injeção do víruos do ódio - radicalizadas contra qualquer outro que não partilhe de suas mesmas crenças. Ao menos assim é a pintura de A., que do jovem solitário norte-americano vai ao radical cooptado pelo ódio, um "vingador" fracassado em sua fatwa da qual ele nada compreendia - assim como aos próprios livros de Rushdie;
7 - Nesse sentido, vale dizer que as reflexões de Rushdie extrapolam a narrativa pessoal e única. Especialmente neste capítulo improvável e imaginado de suas sessões de conversa com A., mais do que tratar do autor de seu atentado, o autor nos mostra o estado geral das coisas de um mundo que A. pode preencher alfabetos inteiros de assassinos radicais. A falar de e com o imaginado A. Rushdie mostra nosso tempo de solidão e medo em que muitos jovens sucumbem às próprias frustrações, à incapacidade de assumirem suas próprias responsabilidades em um mundo sem deus, Revela ainda como os donos do algoritimo viabilizam esse radicalismo, essa vida de incels trancados em quartos lúgubres culpando a tudo e a todos pelos seus próprios fracassos humanos. Rushdie fala de tempos de ódio, fala de nosso tempo...
8 - Como enfrentar então esse ódio? Pela leitura de Faca e pelas próprias palavras de Rushdie, com amor e arte. Como dissemos, os canalhas odeiam ambos. Em grande parte, suas reflexões refletem o amor, o amor que sente e que sente receber de sua esposa Eliza, dos familiares, dos amigos... dos leitores... o livro propõe-se sobretudo ao amor, ao seguir em frente num mundo tão hostil em que o ódio tem sido compartilhado e viraliza a cada post. Parte de tais reflexões encontramos em todos os capítulos, como aquele dedicado aos cuidades de "Eliza" para com ele e especialmente o sétimo, "Segunda chance" e em seu "Desfecho";
9 - Claro que numa narrativa que rememora um fato traumático, para além do que já dissemos aqui, Faca mergulha em todo um processo, do físico ao psicológico em que o autor adentra em sua recuperação - quiçá imporovável para alguns. Neste sentido, não só as escolhas de enfrentamento, mas os tantos e tantos processos médicos, os aspectos mais burocráticos de uma vida ameaçada são trazidos pela narrativa de Rushdie que nesse aspecto ao seu modo também nos desvelam a mundanidade do dia-a-dia daqueles que aos nossos olhos de leitor ocupam certo panteão diferenciado;
10 - Enfim, Faca assim como o próprio autor assume é uma necessidade. Não poderia seguir escrevendo sem encontrar-se e reencontrar-se com aquels 27s mais tenebrosos de sua vida. Um ato tão violento e incompreensível à luz dos sensatos que logicamente nos faz tentar entender a banalidade do ódio, em certa medida adubado pela solidão, pelas frustrações, pelos medos de gente ignorante, mas também pelas "mãos" habilidosas dos titereiros do poder que manipulam as massas em seus projetos de mundo excludentes e incapazes de conviver com as ideias divergentes. Ou seja, uma leitura mais que necessária nestes horríveis tempos que vivemos.