Escrito ainda no decurso da guerra e publicado pela primeira vez em 1945, A revolução dos bichos, de George Orwell publicado pela Companhia das Letras, além do clássico que tornou-se, antecipa outro grande clássico do autor, 1984. Em ambos os casos é jogado uma pá de cal nas utopias entregando ao mundo dois dos mais potentes olhares distópicos. Neste post, confira as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro:
1 - Não à toa A revolução dos bichos (Fazenda dos animais em tradução literal talvez seja interessante) desde sua publicação acaba sendo adotada por leitores de direita, especialmente pela geralmente leitura rasa que faz-se de obra como manifesto anticomunista ou antisocialista. Rasa porque, a despeito que, obviamente é uma escrita antirussa, mas mais do que isso, um manifesto contra a política de Stalin. E isso não que dizer necessariamente anticomunista, o que, inclusive o passado militante de Orwell pode gerar controvérsias. Nesse sentido, o texto de apêndice de Orwell é chave importante em nossa tentativa de interpretar suas possíveis intenções. Neste texto ele aborda seu desconforto com a relação entre Inglaterra e Rússia, aliados de momento e é justamente a partir deste texto que torna-se evidente seu olhar crítico para com a Rússia sob a tirania de Stalin, é esta Rússia que lhe causa preocupações e isso de longe significa dizer que é anticounismo;
2 - Pensamos, inclusive, que o olhar de Orwell vai para além disso, menos uma declaração anticomunista, a fábula talvez possa ser vista como a tomada de consciência de uma morte. A morte da utopia revolucionária. Nesse sentido, a tradução para o português é provável que seja ainda mais significativa que o título original "Animal Farm". Por alguma razão Orwell não usa "Revolution" em seu título, quem sabe pelo peso que seu uso e consciência possam significar para um autor que lutou suas revoluções. Ocorre que, para nós, ao abertamente denunciar o que se tornara a Rússia sob Stalin a partir da zoomorfização da história política, Orwell vai além, o que na verdade nos revela é a morte da utopia e das revoluções; não por coicidência sua publicação de 1984 vai entregar-nos uma das mais acachapantes distopias literárias. Em A revolução dos Bichos Orwell com seu talento crítico e observador demonstra por meio da fábula o quanto as revoluções estão fadadas ao fracasso, um fracasso que pode ser rápido, na melhor das hipóteses, ou mortalmente longo;
3 - Nesse sentido, consideramos que o burro Benjamin seja um dos mais interessantes e curiosos personagens da fábula que, provavelmente compartilhasse muitas coisas em comum com o próprio Orwell. Benjamin é uma terceira margem, nem o eu, tampouco o outro, seu olhar cético convida à razão para com o passado, o presente e o devir do decurso histórico. É a visão cautelosa, nem um adepto da nova ideia, tampouco um ferrenho opositor. Benjamim usa a sua longevidade como espécie de escudo, de distanciamento do afã das coisas. Além de cético, poderíamos dizer que é um sobrevivente, um sobrevivente cauteloso diante o afã da revolução, suas melhorias, etc.;
4 - Caso você não tenha lido a obra, o livro em fábula narra como os animais pertencente à Granja do Solar do Sr. Jones, diante à opressão e desmandos do fazendeiro e as péssimas condições de vida que possuem, decidem rebelarem-se e tomar a granja para si mesmos. Grosso modo, poderíamos pensar que a obra narra o ciclo de vida e morte de uma revolução. Poderíamos dizer que a incubação da ideia é o princípio de tudo, aqui representada pelo velho Major, um porco velho e sábio que incuba em seus camaradas sonhos de liberdade e a canção dos bichos. É o plantar da semente, a que todos vão germinando em seus corações. Aqui ainda espaço da utopia, do desejo de um mundo e de uma vida melhor. Sem dúvida alguma, a incubação é a mais bonita e mais segura das fases de um projeto revolucionário;
5 - A propagação da ideia revolucionária e a organização da revolução em termos de conceitos é fundamental e segunda etapa do processo, que no livro, entretanto, é das fases vista com mais rapidez. É nessa fase que destacam-se três dos porcos fundamentais para a revolução, Bola-de-Neve, Napoleão e Garganta. São os três que organizam os ensinamentos do Major e que planejam a revolução. Campo comum falarmos que são estes animais alusões diretas aos nomes da Revolução Russa, sendo Napoleão a versão oinc oinc de um Stalin que fica gorducho com o tempo, pelas riquezas e vidas tomadas em nome da revolução;
6 - Mas justamente aí mostra-se o quão rasa é a interpretação de quem concebe a obra como simplesmente anticomunista. Vejamos que o velho Major é visto como personagem alusivo à Lenin e seus ideais. Em que parte do livro há qualquer crítica ao desejo do velho Major pela liberdade e pela comuna entre os seus? Em que momento pode-se ver no discurso da narrativa qualquer rejeição à proposta inicial, a de os bichos obterem sua liberdade em relação ao Sr. Jones? Poderíamos dizer, justamente o contrário, que em grande medida o problema nunca foi a revolução, mas sim a subversão de suas ideias. Aliás, isso sim encontramos elementos irrefutáveis no texto, já que, por meio de Garganta, o porco propagandista de Napoelão, como na Rússia de Stalin, os ideais e ensimamentos originais vão sendo reescritos pelos tiranos que começam a romper com a ideia revolucionária inicial; Além disso, a relação entre Napoleão e Bola-de-Neve (Trotski) será paradigmático nesse sentido, mas voltaremos a isso;
7 - Da ideia e da propagação da ideia revolucionária, chegamos ao ato revolucionário em si, ou seja, a própria revolução. Pensar na revolução será sempre mais fácil que colocá-la em prática e mantê-la. Liderados pelos porcos, Bola-de-Neve e Napoleão, especialmente, os animais tomam a granja e como sempre nesses casos, vinda a vitória a estupefação inicial que pode ser representada por um "e agora?". Os primeiros segundos de uma vitória revolucionária devem ser, possivelmente, os mais libertadores e assustadores de todo o provesso (também o momento mais perigoso). Uma soma de sentimentos, entre eles, o medo e o êxtase, combinações perigosas. Os animais da fazenda experimentam tais sentimentos ao perceberem-se vitoriosos, para onde ir? O que fazer? Isso vai dar certo? Conseguiremos viver livres?
8 - É quando começa a importante fase da revolução, sua implementação. Talvez o período que paradoxalmente vá matar toda e qualquer revolução. Passados segundos da vitória de uma revolução, há pouco tempo para titubear, para lacunas. É preciso organizar o novo sistema, manter o movimento revolucionário de modo a evitar contra-ataques que existirão, como há no livro. Por ser momento perigoso, são os primeiros passos os mais decisivos, já que conforme novas figuras postrem-se em pontos do jogo, a revolução pode perder-se mais ou menos rapidamente. No caso da dos bichos, há um princípio de implementação amistoso, sem divisões internas, conseguem mesmo vencer uma perigosa batalha expulsando Jones e seu grupo em uma tentativa de reaver a granja. Mas aí já está um ponto que via de regra acorrem às revoluções:a subversão das ideiais originais;
9 - É justamente isso que impede que essa narrativa seja uma fábula anticomunista. Não há como criticar o que não se concretizou. Assim como os ideais de Lenin, na fábula os ideais do velho Major são subvertidos pelo tirano Napoleão, que em um processo lento e gradual vai subvertendo toda a ideia original da revolução dos bichos. Só um tolo pode dizer que Napoleão instaura o comunismo na granja, tal como pensava o Major ou o exilado Bola-de-Neve, expulso e perseguido por Napoleão tal qual Trotski por Stalin. Na subversão e tomada da revolução que Napoleão faz, o faz lentamente, mas nunca voltando ao cerne original, pelo contrário. Longe do comunismo inicial pensado para os camaradas bichos, Napoleão é mais uma figura antecipadora do neoliberal capitalista que de um comunista, sejamos francos. Aliás, cada vez menos porco e mais como as caricaturas capitalistas humanas, Napoleão explicitamente vai apagando os ideiais comunistas da revolução. Isso está na reescrita dos mandamentos, na operação sobre a memória e não menos simbólicos que a proibição de tratarem-se por camaradas. Ainda mais acachapante o fato que torna célebre a fama de Napoleão entre seus vizinhos. Ele não só repete o sistema de Jones como "o melhora", o torna ainda mais lucrativo. Aqui a revolução já está morta e apenas vê-se a substituição de um demagogo por outro e esse novo demagogo não implementa um sistema comum, mas obviamente - e textualmente - coloca a granja sobre o velho e antigo regime, pela opressão de Napoleão ainda mais eficiente e lucrativo - para ele e sua elite. Ou seja, nem de perto Napoleão introduz uma vida comum, embore disfarce sua gestão por meio da propaganda. Na verdade, ao leitor astuto, o que vemos por Napoleão é a radicalização do sistema anterior: o capitalismo;
10 - É por estas e outras rasões que dizemos o quão rasa é a leitura de anticomunista da obra. A revolução dos bichos, antes de mais nada é sobre a morte das revoluções, a incapacidade de vivermos sob um modelo mais justo de existência. Isso não que dizer que seja menos assustador. Além disso, é muito mais razoável dizer que sob prismas profundos, a fábula é muito menos uma narrativa anticomunista e muito mais uma narrativa tenebrosa sobre até onde pode ir o capitalismo em sua radicalidade. Me convença do contrário.