O post de hoje é provocado por uma discussão trazida por estudantes do Ensino Médio de uma de minhas turmas de literatura: "sor, o que diz dessa letra: Quando eu morrer/Eu quero ser enterrada de quatro/Porque assim/A terra vai me comer do jeitinho que eu gosto". O caminho mais simples tomado por grande parte de professores e, credo, estudantes, tem sido a crítica - muitas vezes moralista e a depreciação do gênero e da autora (com a fala dela sobre professores, os ataques pioraram, embora nossa indignação devesse se concentrar no fato de que o salário de miséria de um professor o coloca entre os médios do país e distante dos cerca de 85% dos brasileiros que ganham salário mínimo ou pouco mais. Isso sim deveria gerar revolta). Mas podemos assim, tão facilmente dizer que Mc Pipokinha não é literatura? Nesse post problematizamos um pouco mais a questão, de modo que olhemos a questão sem a facilidade das respostas fáceis e seguras. Confira 10 razões porque MC Pipokinha também é literatura:
1 - Afinal, o que é literatura? Seus bons professores devem ter ensinado que a despeito de diferentes estudos e das múltiplas contribuições de conceitos, o consenso entre estudiosos da literatura é que essa não é de fácil - ou mesmo possível definição. Se pegarmos as visões mais simples de literatura, como a do uso da linguagem enquanto recurso, há na letra dita alguma coisa de metáfora e mesmo aliterações. Além disso, temos uma composição em versos e uma estrutura reconhecidamente presente em determinado gênero da literatura, não? Poderíamos somar aqui a bela e indispensável compreensão de Antonio Candido que considera literatura toda obra de toque poético. Candido não diz que você precisa concordar sobre o que é poético ou não, ou mesmo tece julgamento de valores. Independentemente se achamos boa o má a letra da referida canção, não podemos negar que trata-se de uma construção do poético, e digo mais, de um poético popularesco e burlesco. Já é um começo interessante, não, para reavaliarmos nosso olhar...
2 - Nada de novo no front: As acusações gerais ao cancioneiro de MC Pipokinha partem para questões de valores morais, classificando a obra a partir da vulgaridade. Não podemos desconsiderar aqui o quanto a crítica à cantora é demarcada por condicionantes sociais. Vi pessoas defenestrando-a e também suas músicas, mas que em contrapartida, por exemplo, aqui no sul adoram ouvir o músico Baitaca, famoso pelo Fundo da Grota, mas que em suas canções há História do Tico Louco, tão obscenas quanto. Os ataques e a crítica partem, então, em alguma dose do fato da origem do gênero e da cantora, entretanto, o que pretendemos dizer é que na verdade MC Pipokinha sequer tem algo de muito originalidade - ainda que esta seja uma ilusão - pois suas músicas versam de temas ou do tema tão antigo quanto a roda, a sexualidade, o corpo, o desejo, sejam em obras ocidentais ou orientais. A literatura, inclusive a poesia, está repleta de autores e autoras cujos versos são constituídos das mesmas sementes de MC Pipokinha. Na Idade Média, então, o cu era central na arte, fosse ela escrita ou pintada. Leiam, por exemplo, a obra de Bahktin A cultura popular na Idade Média e no Renascimento que seus conceitos sobre as letras de Pipokinha talvez alterem um pouquinho, além disso, quem quiser saber um pouco mais sobre essas publicações tão populares pode ler o Páginas de Sensação um estudo sobre a literatura erótica no Brasil;
3 - Canção e poesia nasceram juntos: embora hoje dissociadas - importante considerar a música enquanto composição - é preciso recordar que em seu nascedouro não havia distinção entre música e canção. A poesia, a poesia era construída, inclusive para ser acompanhada pelo som das liras, de modo que, numa acepção ampla de literatura a letra de uma canção pode ser considerada no campo de estudos da literatura, por que não? Aliás, o nobel para Bob Dylan parece fortalecer esse tipo de escolha, ou publicações importantes como Sobrevivendo ao inferno com letras do Racionais MC's. Nesse sentido poderíamos dizer que Pipokinha faz uso do mais antigo gênero literário, o lírico, independentemente se você goste ou não de sua obra. E mesmo que alguém grite, "ah, mas não tem rimas, não há métrica, blábláblá", resta-nos lembrar que métrica e rima não são mais obrigações poéticas desde o modernismo que implodiu todas as estruturas clássicas;
4 - E a literatura comparada? Pipokinha e seus pares: não aprofundaremos o tema, mas uma das áres dos estudos literários é a literatura comparada que permite colocar diferentes obras e autores em "contato" de modo a compararmos os mais diferentes elementos. E aí me surge novamente a lembrança que a temática e o universo do cancioneiro de Pipokinha não tem muita coisa nova não e assim, de pronto, é possível colocarmos suas canções [ou a citada canção que tem instigado a uma certa quantidade de estudantes a ouvir ou falar de suas músicas (aliás, já ouvi de cantinho estudantes do sexto ano recitando versos pipoquescos)] ao lado de alguns autores relevantes da literatura mundial. Pra começo de conversa dizer que as letras de Pipokinha são uma imoralidade ou não são literatura incorre em eliminar da história da literatura em língua portuguesa um de seu maiores nomes, Bocage, conhecido por seu Decamerão e por sua coleção de poemas eróticos, satíricos, burlescos e bastante obscenos. Aliás, a letra a mim trazida por estudantes interessados na opinião de seu professor de literatura, desconfio, poderá se transformar em um artigo em que comparamos a letra da música ao Soneto II de Bocage um epitáfio muito interessante para por em conjunto com a música pipoquesca. Há, na verdade, uma grande variedade de poetas que em momento ou outro usam da sátira e do obsceno para suas criações, outro famoso em nosso literatura é Gregório de Matos, o Boca do Inferno. Sem falar dos mais ingênuos que aproveitam-se da cacofonia para brincar, caso de "As rosas do cume". Hilda Hist também escandalizou com sua literatura explícita e provocativa;
5 - Vá saber onde há intertexto?!: Na surpresa da pergunta, tergiversei, andei aqui e acolá sem muitos comprometimentos, até porque são tempos estranhos esses, inclusive para professores de literatura. Mas ao ouvir os versos iniciais da canção lembrei de imediato da dedicação de Memórias Póstumas de Brás Cubas: "Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas". Vá saber onde há intertexto ou influências na criação cultural? Mas o fato é que ambos os textos tratam da certeza do fim, da finalidade do corpo e ao que está destinado, Pipokinha apenas deixa uma canção-testamento que diante da fatalidade da morte e da decomposição da carne, deseja pelo menos vencer ao escolher a forma, do jeito que ela mais gosta. Vermes e mais vermes em nossa literatura, como disse, vá saber onde nasce uma influência?
6 - A morte, a morte, a morte: Voltando à canção citada, lembrando que interpretar um texto literário vai muito além de decodificar o código escrito, poderíamos mergulhar em observações interessantes nessa letra, especialmente que está alicerçada num tema que volta e meio se torna a questão central da criação literária. No romantismo, por exemplo, à sombra de um Mal do Século, a morte espreitava em cada esquina estando presente - e viva - numa boa dose de poemas. Álvares de Azevedo, por exemplo, escreve seu Lembranças de Morrer que assim como o citado soneto de Bocage poderia ser colocado ao lado da letra para termos de comparação, ou seja, a despeito de qualquer olhar simplista, podemos lançar diferentes provocações na mesa;
7 - Eu lírico feminino e liberto de condicionantes: descobrimos nas aulas de literatura que composições em versos não possuem narrador, mas Eu lírico. De modo geral, o Eu lírico feminino causa incomodo e reações das mais diversas, podemos citar, novamente as poesias de Hilda Hist. Isso, aliás, é outro detalhe a ser discutido, fosse um Eu lírico masculino despejando indecências, seria visto da mesma forma? Uma série de letras e canções de duplo sentido - em todos os gêneros, inclusive no tido como santo, sertanejo - trazem "vulgaridades" semelhantes, sem a mesma crítica, mas, enfim, o Eu lírico feminino que não se encaixa num perfil de mulher definido pelo status quo geralmente revolta e causa e indignação e se o faz, não poderia, assim, sem aprofundar falar o quanto, mas temos indícios de aí ter algo de literatura;
8 - Estranhamento: Para alguns teóricos da literatura é arte do estranhamento e o fato de diferentes gerações e leitores desejosos ou não por ter conhecido da obra pipoquesca revela que seus textos provocam estranhamento ou incômodo. Aliás, assim surge a literatura fantástica ao tratar de temas tabus por meio do muitas vezes indizível. Quantos autores causaram tanto quanto estranhamento e escândalo e hoje são lidos e estudados, um Marques de Sade, por exemplo. Se há estranhamento é possível que haja algo de literário então...
9 - O que muitos querem e poucos conseguem: o mais curioso é que MC Pipokinha saiu das catacumbas de suas apresentações para conseguir o que muitos autores literários desejam e poucos consegue, ter sua obra discutida, criticada e acessada. Muitos levantando pontos dos mais variados. Na disciplina que faço no doutorado, na graduação foi assunto de estudantes de uma disciplina, que no fim ela reúne a tríade, a escrita, a leitura e a crítica;
10 - Mas enfim...: o post não tem a intenção de fazer uma defesa de MC Pipokinha tampouco tecer julgamentos sobre sua obra, entretanto, é um convite a nos afastarmos das falas fáceis, dos julgamentos ingênuos e precipitados. De todo modo não deixa de ser curioso o alcance tomado pela problemática e que praticamente em todas as minhas turmas - e eu tenho algumas e das mais variadas - um ou outro estudante puxe o tema. O caminho fácil é dizer que porcaria, que vergonha e perder a oportunidade de adentrarmos a uma discussão sobre a literatura. Além disso demonstrar que, se desconhecemos algo, o julgamento rápido a crítica pronta, que nos parece forte, não é mais que fumaça, distração. O que nos resta como fato é que as pessoas estão debatendo MC Pipokinha e é nossa obrigação o fazer de forma qualificada.
mano do nada a MC pipokinha aparece no link da escola KHKJKGY
ResponderExcluirEu comecei a ler, mas tive preguiça de terminar. Onde uma música sem sentido, sem começo, meio e fim, tem literatura? Estamos de fato no fim dos tempos. É impossível comparar isso com Vinícius de Moraes, seria um tapa na cara dele.
ResponderExcluirLeia, bons conhecedores da literatura entenderão 😉
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