O Blog Listas Literárias leu Jantar Secreto, de Raphael Montes publicado pela Companhia das Letras; neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro, confira:
1 – Jantar Secreto talvez seja a obra a ser filmada por Quentin Tarantino, e, sem exagero algum posso antever o sucesso que esta publicação terá ao receber suas traduções no mercado internacional o que muito em breve tornará Raphael Montes certamente um dos mais conhecidos escritores brasileiros no mundo com suas narrativas insanas, mas assustadoramente possíveis. Ademais, a citação a Tarantino não é gratuita, visto que o próprio autor o cita como influência no livro, uma narrativa inclusive que a mim lembrou a cena final de Um Drink no Inferno em que o espectador/leitor percebe/descobre que teve acesso apenas um pedaço do horror, pois o inferno prosseguirá para além dos créditos finais;
2 – Aliás, Jantar Secreto revela e reforça o talento do autor de aliar o erudito e o clássico, pois se temos por um lado referências da iconografia pop, inclusive com um descerramento da máscara do monstro a la Scooby-Doo, por outro, a literatura clássica como Dante Alighieri, Dostoiévski entre outros, mais do que permear a obra, lhe dá estruturação e se incorporam em algo novo e numa autenticidade única;
3 – Todavia, divirjo daqueles que insistem em classificar o autor como literatura policial, o que até se pode pensar no campo mercadológico, mas que não se sustenta nos estudos literários. Lembremo-nos de que Todorov apontava que romance policial é todo aquele que melhor se encaixa e seu gênero, caso contrário trata-se de outra coisa. Parece-me o caso de Raphael Montes, e assim como em seu elogiado Dias Perfeitos, Jantar Secreto é uma narrativa que parte do culpado que no caso do livro nos fala de sua experiência jundo do grupo de amigos servindo carne humana em jantares misteriosos. Só por isso já navegamos na corrente contrária do romance policial, o que se intensifica com o fato da obra de Montes em grande parte relativizar ou até mesmo retirar um elemento central a toda ficção policial, seja clássica seja noir: a punição. Com isso estamos diante algo novo, e que arrisco dizer é característico às narrativas de crime brasileiras cuja inventividade dos autores transborda o gênero;
4 – Além disso, cabe abordar aqui “as brincadeiras e as experiências” que o autor realiza trazendo para narrativa outros gêneros textuais, o que embora não seja novidade, vale dizer que funciona extremamente bem, especialmente para compor o humor negro que permeia a obra, e nisso vale ressaltar que o capítulo narrado a partir de uma sequência de mensagens provavelmente não funcionaria tão bem de outra forma;
5 – Mas, aqui vem creio algo mais relevante da narrativa. Ainda que ela possa ser enfrentada como uma leitura para entreter, cheia de ação, adrenalina e claro sangrenta e mal passada como os bifes de gaivota servidos nos jantares secretos, ela vai além, estrutura-se numa série de camadas que nos farão refletir sobre estes tempos insensíveis, especialmente porque a violência cruel nua e crua de suas páginas não são destituídas de reflexão e crítica social;
6 – Comecemos pelo fato dos quatro jovens recém formados estabelecerem uma jornada de degradação humana levando-os a uma bestialização tenebrosa a partir de uma decisão que lhe parecia de menor impacto. Do primeiro jantar de carne de gaivota ao último dantesco encontro, os quatro amigos abrem todas as portas para entrar em nossa versão tupiniquim com o Inferno de Dante à brasileira descrito por Montes;
7 – Do mesmo modo, a completa desumanização da sociedade se escancara a partir do crescimento dos jantares antropofágicos realizados pela equipe Carne de Gaivota, um crescimento sem precedentes como veremos na parte final do livro, quando, como leitores, já superamos a parte do humor e nos colocamos dentro de um cenário indigesto cujos personagens abordam e vendem com a maior naturalidade. Pior que isso é ainda observarmos que os horrores ditos pelos mais dementes personagens de Montes ou já vimos ou poderemos ver publicados em algum destas redes sociais da vida. Em tempos desumanos, Raphael Montes de certo modo nos pinta nossos possíveis piores cenários futuros, e mesmo aos que bradem que “trata-se apenas de ficção”, bem sabemos que já existe todo um mercado de peças humanas, e daí para a existência de Umbertos e Vladimires é só um pulo;
8 – Sem falar que uma observação da lista de clientes do Carne de Gaivota poderá dizer um pouco desta nossa sociedade humana com cada vez menos humanos no sentido social e literal da palavra. Olhar para tais pessoas nesse caso é relevante porque se o público apreciador, deveras teríamos uma interrupção na narrativa. Contudo lá estão eles a representar nossa bestialização cada vez mais no fundo de um poço sem fim.
9 – Portanto, a despeito de tantos elogios fica difícil apontar problemas nesta impactante narrativa que para achá-los teríamos que ir ao nível do preciosismo como “procurar pulgas em cachorrinhos de pet-shop”. Nesse caso apontaríamos motosserras que não incomodam o vizinho do apartamento de cima, o pouco recomendável ato de criar uma empresa homônima do restaurante proibido para lavar dinheiro, ou o fato de que ao ver deste humilde leitor, o preço dos jantares secretos até estavam bem em conta se compararmos com os menus mais caros do mundo;
10 – Enfim, vibrante, sensacional e plenamente diabólico, Jantar Secreto reforça uma maneira muito nacional de fazer e criar narrativas de crime. É do mesmo modo o extrapolar do naturalismo brasileiro que nesta narrativa de suspense ultrapassa todos os limites da desumanização do indivíduo e da própria sociedade. Se carrega algum pecado este pulsa em traços muitas vezes deterministas que movem personagens importantes, o quê, contudo, não lhe tira valor, numa leitura que não é para pessoas fracas de estômago e mente. Raphael Montes cria uma obra insanamente insana, mas que para nossos piores pesadelos, encontrará ecos numa sociedade cada vez mais deturpada, corrupta e animalizada. Jantar Secreto fará muito sucesso e venderá muito, mas o que importa é que é muito mais que isso. E, por gentileza, fica a dica, se você se identificar com algum dos personagens, por gentileza interne-se imediatamente.
Impressionante análise!
ResponderExcluir"leitura que não é para pessoas fracas de estômago e mente"
A minha mente é forte mas o estômago é fraco, então agradeço pelo aviso!
A primeira coisa que vem a minha cabeça é H. Lecter. Acho que por isso não me despertou tanto interesse, Lecter é único.
ResponderExcluirRaphael Montes está ganhando o espaço merecido na literatura nacional, e até mesmo lá fora. Ainda não li nada dele, mas Jantar Secreto já está na fila de espera haha
ResponderExcluirDicas do Jess
Li Suicidas e sépia Jantar Secreto. Realmente é o assunto é forte, mas altamente reflexivo sobre a sociedade atual.
ResponderExcluirRafael consegue descrever pessoas comuns de forma a torna Los grandes personagens
Muito bom escritor